Como se desvencilhar da família? Questão ecoa num dos grandes livros do ano
Rodrigo Casarin
31/10/2019 10h41
"Eu me reclinei na grama entre árvores caídas e o sol que aquece a palma da minha mão me deu a impressão de ter uma faca com a qual ia me esvair em sangue com um corte ágil na jugular. Ao fundo, no cenário de uma casa entre decadente e familiar, podia sentir as vozes do meu filho e do meu marido. Os dois nus. Os dois chapinhando na piscina de plástico azul, com água a trinta e cinco graus. Era um domingo véspera de feriado. Estava a poucos passos deles, escondida entre as ervas daninhas. Eu os espiava. Como é que eu, uma mulher fraca e malsã que sonha com uma faca na mão, era mãe e esposa desses dois indivíduos? O que fazer?"
São muitos os momentos em que a narradora de "Morra, Amor", romance de estreia da argentina Ariana Harwicz que acaba de sair no Brasil pela Instante (tradução de Francesca Angiolillo), gostaria de ter uma faca nas mãos. Dessa forma, talvez, com um impulso, poderia dar um final para aqueles dois tormentos de sua vida: o filho que acabara de ter e o marido que parece ocupar todos os espaços do que deveria ser o lar da família. Deveria.
No interior da França, a casa onde residem se mostra para a personagem como uma espécie de prisão provocada pela ideia do que esperam de uma família. Pode soar confuso, mas está justamente na maneira como constrói a turbulência interna de sua protagonista o grande mérito de Ariana, que em diversos momentos faz com que o leitor se sinta desnorteado em meio às questões silenciadas, ocultadas ou mal resolvidas vivenciadas pela recente mãe.
De cara, pensei estar diante de uma história sobre depressão pós-parto. Trechos como esse corroboram a ideia: "É impossível fazer qualquer outra coisa além de ser mãe [….]. Eu me arrependo, mas nem posso dizer […]. Não se preocupo com o que possa pensar de mim. Eu o trouxe ao mundo, já é o suficiente". O transtorno aparenta estar no cerne da obra, no entanto ela não se limita a isso – o que já não seria pouco. Estamos diante de alguém em conflito interno com o rebento, mas que também é esmagada pelas encenações cotidianas: o passo a passo do domingo perfeito, do natal com os entes supostamente queridos, as mediocridades da vizinhança, o teatro conjugal…
Ao longo da leitura de "Morra, Amor", a pergunta mais fácil que retumba na cabeça é: por que a personagem não dá um basta na situação e procura se refazer em outro canto? Seria uma solução tão simplista quanto quase inverossímil para quem sabe que a vida é bem mais complexa do que essas especulações despretensiosas. Afinal, é fácil deixar uma família para trás, sobretudo para uma mulher que acaba de virar mãe? Se a ruptura não aconteceu, não é sinal de que o ponto em que a coisa estoura ainda não chegou? Ou às vezes já estourou e fingimos não notar? Como se desvencilhar do companheiro com quem outrora vislumbramos o futuro? Como não pensar na cria recém-parida? Por outro lado, retornando ao umbigo da personagem, como não pensar em si?
Talvez a solução perfeita esteja explicitada no título do livro: morra, amor. Numa família, pelo que empurram goela abaixo, todos se amam. Então, se constatar o fim desse amor de forma saudável e madura – outra cobrança da mesma força oculta que impele principalmente as mãe recentes ao centro do universo familiar – parece impossível, talvez a morte seja um caminho para a solução dos problemas.
"Nos dias em que meu marido viaja, ponho um bebê de plástico no banco de trás do carro bem na hora do calor. Eu me divirto vendo a quantidade de vizinhos e funcionários públicos que se assistem. Gosto de observar suas reações de bons cidadão, de heróis querendo quebrar o vidro e salvar a criaturinha de morrer sufocada. Eu me deleito quando vejo o caminhão de bombeiros chegar ao vilarejo com a sirene ligada. Retardados. E, se eu quiser deixar meu bebê no carro debaixo de uma sensação térmica de quarenta graus, eu deixo. E não me venham com essa de que é ilegal. Se eu quiser escolher a ilegalidade, se eu quiser me tornar uma dessas tantas congeladoras de fetos, eu me torno. Se eu quiser ir para a cadeira por vinte anos, ou fugir, isso também é uma possibilidade", encena a protagonista.
De forma explicita ou implícita, é nesse emaranhado de questões suscitadas pelos redemoinhos emocional e psicológico vivenciados pela personagem que o leitor de Ariana mergulha – ou é afogado, a depender de cada um. "Morra, Amor", cuja versão em inglês foi indicada ao Man Booker Prize de 2018, se confirma como um dos grandes romances estrangeiros a chegar no Brasil neste ano – ele saiu originalmente em 2012 e foi sucedido por "La Débil Mental" e "Precoz", no que é apontado como uma espécie de trilogia sobre a maternidade.
O título também confirma o ótimo momento da literatura argentina feita por mulheres na faixa dos 40, 50 anos, muitas delas apostando em alguma forma de horror. Ariana Harwicz cai bem num time de autoras hermanas que merecem a leitura, composto por nomes como Mariana Enriquez, Samanta Schweblin (alô, editoras, cadê a tradução de "Kentukis" para o português?), Selva Almada e Laura Alcoba (esta ainda inédita no Brasil, outro alerta aos nossos editores).
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Sobre o autor
Rodrigo Casarin é jornalista pós-graduado em Jornalismo Literário. Vive em São Paulo, em meio às estantes com as obras que já leu e às pilhas com os livros dos quais ainda não passou da página 5.
Sobre o blog
O blog Página Cinco fala de livros. Dos clássicos aos últimos sucessos comerciais, dos impressos aos e-books, das obras com letras miúdas, quase ilegíveis, aos balões das histórias em quadrinhos.