O absurdo é o que mais se vê na História: Pablo Neruda para os nossos dias
Rodrigo Casarin
29/10/2019 09h54
"Estas memórias ou lembranças são intermitentes e, por momentos, me escapam porque a vida é exatamente assim […]. As memórias do memorialista não são as memórias do poeta. Aquele viveu talvez menos, porém fotografou muito mais e nos diverte com a perfeição dos detalhes; este nos entrega uma galeria de fantasmas sacudidos pelo fogo e a sombra de sua época […]. Minha vida é uma vida feita de todas as vidas: as vidas do poeta".
Dessa forma que Pablo Neruda inicia "Confesso que Vivi", seu volume de memórias publicado pela primeira vez em 1974 e que acaba de ser relançado pela Bertrand Brasil. Nessa nova edição há o acréscimo de material autobiográfico até então inédito encontrado nos arquivos da Fundação que preserva o acervo do poeta. Há tempos que namorava o livro. A série de manifestações que tomou conta do Chile, terra natal de Neruda, foi a deixa para pescá-lo da infinita pilha de desejáveis leituras.
São muitos os momentos em que as memórias de Neruda caem bem para esses dias de convulsão e revolta que os chilenos e outros povos de diversas partes do mundo estão vivendo – mais um indício de como a história anda correndo atrás do próprio rabo. Consagrado por "Canto Geral" e vencedor do Nobel de Literatura de 1971, o escritor define a própria produção da seguinte forma: "ao sul da minha poesia está a solidão; ao norte, o povo".
Com versos que habitualmente passam por temas como o amor, a ternura, os prazeres e a esperança (vez ou outra construídos com uma pegada bem piegas), é difícil separar o poeta Neruda do homem político, como ele mesmo assume. E a vida que o escritor levou, retratada por meio das centenas de fragmentos que compõem o livro, é uma prova disso. Se a literatura lhe permitiu conhecer o mundo, as posições ideológicas o fizeram ser perseguido e confrontado. Também se confrontava bastante, afiando o olhar crítico em relação a diversos aspectos do campo de esquerda do qual era parte.
Membro do Partido Comunista chileno, Neruda atuou como embaixador de seu país e esteve ao lado de Salvador Allende quando este chegou ao poder, em 1970, pelo Partido Socialista. Allende sofreu um golpe de Estado liderado por Augusto Pinochet três anos depois, no que ficou conhecido como o primeiro 11 de Setembro. Neruda faleceu 12 dias após os bombardeios ao Palácio de La Moneda e a causa de sua morte é até hoje controversa – a história oficial apontava que o poeta tinha sido vítima de câncer, mas estudos recentes descartaram essa versão, reforçando a tese de que o escritor teria sido assassinado pelos militares sob comando de Pinochet.
Apesar de tudo, as memórias de Neruda contam com doses generosas de otimismo, algo cada vez mais raro e especialmente valioso para leituras feitas em dias como os que estamos vivendo, que parecem preceder algo ainda mais grave.
Leia alguns trechos de "Confesso que Vivi":
Política se infiltra na poesia de Neruda
"Enquanto isso, mudava a vida do Chile.
Clamoroso, levantava-se o movimento popular chileno buscando entre os estudantes e os escritores um apoio maior. Por um lado, o grande líder da pequena burguesia, dinâmico e demagógico, Arturo Alessandri Palma, chegava à Presidência da República, não sem antes ter sacudido o país inteiro com sua oratória chamejante e ameaçadora. Apesar de sua extraordinária personalidade, uma vez no poder, converteu-se no clássico governante de nossa América; o setor dominante da oligarquia, que ele combateu, abriu a goela e tragou seus discursos revolucionários. O país continuou debatendo-se os conflitos mais terríveis.
Ao mesmo tempo, um líder operário, Luis Emilio Racabarren, com uma atividade prodigiosa organizava o proletariado, formava centrar sindicais, fundava nove ou dez jornais operários em toda a extensão do país. Uma avalanche de desemprego abalou as instituições. Eu escrevia semanalmente em 'Claridad'. Os estudantes apoiávamos as reivindicações populares e éramos espancados pela polícia nas ruas de Santiago. À capital chegavam milhares de operários despedidos das minas de salitre e de cobre. As manifestações e a repressão correspondente paralisavam tragicamente a vida nacional.
Desde aquela época e com intermitências se infiltrou a política em minha poesia e em minha vida. Não era possível fechar-me em meus poemas, assim como tampouco o era fechar a porta ao amor, à alegria ou à tristeza em meu coração de jovem poeta".
O absurdo é o que mais se vê na História
"O cônsul alemão Hertz adorava as artes plásticas modernas, os cavalos azuis de Franz Marc, as figuras alongadas de Wilhelm Lehmbruck. Era uma pessoa sensível e romântica, um judeu com séculos de herança cultural. Perguntei-lhe uma vez:
– E esse Hitler, cujo nome aparece de vez em quando nos jornais, esse chefe antissemita e anticomunista, não acredita que ele possa chegar ao poder?
– Impossível – disse.
– Como impossível se o absurdo é o que mais se vê na História?
– É que você não conhece a Alemanha – sentenciou. – Ali é totalmente impossível um agitador louco como esse poder governar sequer uma aldeia.
Pobre amigo, pobre cônsul Hertz! Aquele agitador louco por pouco não governou o mundo. E o ingênuo Hertz deve ter acabado numa anônima e monstruosa câmara de gás com toda a sua cultura e seu nobre romantismo".
Inteligência que ascende
"As absurdas pretensões 'racistas' de algumas nações sul-americanas, produtos elas mesmas de múltiplos cruzamentos e mestiçagens, são uma tara de tipo colonial. Querem montar um tablado onde uns quatro esnobes, escrupulosamente brancos ou esbranquiçados, apresentem-se em sociedade, gesticulando diante dos arianos puros ou dos turistas sofisticados. Por sorte tudo isso vai ficando para trás, e a ONU está se enchendo de representantes negros e mongólicos, isto é, a folhagem das raças humanas está mostrando, com a seiva da inteligência que ascende, todas as cores de suas folhas".
Culto à personalidade
"Eu já tinha experimentado a minha dose de culto à personalidade no caso de Stalin. Mas naquele tempo Stalin nos aparecia o vencedor avassalante dos exércitos de Hitler, o salvador do humanismo mundial. A degeneração de sua personalidade foi um processo misterioso, até agora enigmático para muitos de nós.
E agora aqui, em plena luz, no imenso espaço terrestre e celeste da nova China, implantava-se de novo diante dos meus olhos a substituição de um homem por um mito. Um mito destinado a monopolizar a consciência revolucionária, a concentrar em uma só mão a criação de um mundo que será de todos. Não pude engolir, pela segunda vez, essa pílula amarga".
Continuo acreditando na possibilidade do amor
"Ajuda-me, poema de amor, a restabelecer a integridade, a cantar sobre a dor.
É verdade que o mundo não se limpa de guerras, não se lava de sangue, não se corrige do ódio. É verdade.
Mas é igualmente verdade que nos aproximamos de uma evidência: os violentos se refletem no espelho do mundo, e seu rosto não é bonito nem para eles mesmos.
E continuo acreditando na possibilidade do amor. Tenho a certeza do entendimento entre os seres humanos, logrado sobre o sofrimento, sobre o sangue e sobre os cristais quebrados".
Esperança inesgotável
"Quero viver num mundo sem excomungados. Não excomungarei ninguém. Não diria amanhã a esse sacerdote: 'O senhor não pode batizar ninguém porque é anticomunista'. Não diria a outro: 'Não publicarei seu poema, sua criação, porque o senhor é anticomunista'. Quero viver num mundo em que os seres sejam somente humanos sem outros títulos a não ser estes, sem serem golpeados na cabeça com uma régua, com uma palavra, com um rótulo. Quero que se possa entrar em todas as igrejas e em todas as gráficas. Quero que não haja mais ninguém para esperar as pessoas à porta da prefeitura para detê-las e expulsá-las. Quero que todos entrem e saiam do Palácio Municipal sorridentes. Não quero que ninguém fuja de gôndola, que ninguém seja perseguido de motocicleta. Quero que a grande maioria, a única maioria, que todos possam falar, ler, escutar, florescer. Nunca entendi a luta senão para que esta termine. Nunca entendi o rigor senão para que o rigor não exista. Tomei um caminho porque acredito que esse caminho nos leva, a todos, a essa amabilidade duradoura. Luto por essa bondade ubíqua, extensa, inesgotável. De tantos encontros entre minha poesia e a polícia, de todos esses episódios e de outros que não contarei porque me repetiria, e de outros que não me aconteceram, mas a muitos que já não poderão contá-los, fica-me no entanto uma fé absoluta no destino humano, uma convicção cada vez mais consciente de que nos aproximamos de uma grande ternura. Escrevo sabendo que sobre nossas cabeças, sobre todas as cabeças, existe o perigo da bomba, da catástrofe nuclear que não deixaria ninguém nem nada sobre a terra. Pois bem, isso não altera minha esperança. Neste minuto crítico, neste pestanejar de agonia, sabemos que entrará luz definitiva pelos olhos entreabertos. Todos nos entenderemos, progrediremos juntos, e essa esperança é inesgotável".
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Sobre o autor
Rodrigo Casarin é jornalista pós-graduado em Jornalismo Literário. Vive em São Paulo, em meio às estantes com as obras que já leu e às pilhas com os livros dos quais ainda não passou da página 5.
Sobre o blog
O blog Página Cinco fala de livros. Dos clássicos aos últimos sucessos comerciais, dos impressos aos e-books, das obras com letras miúdas, quase ilegíveis, aos balões das histórias em quadrinhos.