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Queridinho da vez, "Marrom e Amarelo" é um livro que merece mesmo ser lido

Rodrigo Casarin

25/09/2019 08h37

No romance "O Próximo da Fila", de Henrique Rodrigues (Record), o protagonista aprende aquela que seria uma das lições mais valiosas no emprego numa unidade de uma gigantesca rede de lanchonetes. Na hora de limpar o piso, deveria pegar o esfregão, colocá-lo no chão e caminhar lentamente de costas enquanto desenha um oito para recolher toda a sujeira. O que dá força para a cena é a metáfora proposta: o adolescente que busca ascender socialmente e profissionalmente precisa empunhar o esfregão e sair pelo estabelecimento fazendo o sinal do infinito enquanto caminha para trás.

São frequentes os momentos em que temos a impressão de que estamos – como sociedade, como país – fadados a isso: retroceder infinitamente. Em muitos aspectos, se compararmos o Brasil de hoje com o de 20, 30 ou 50 anos atrás, avançamos consideravelmente. No entanto, as transformações históricas acontecem mesmo dessa forma: com progressos significativos e momentos de regresso que precisam prontamente ser freados por aqueles que vislumbram uma sociedade mais justa e plural. A França teve algumas recaídas para que, após a Revolução, conseguisse enfim se estabelecer como uma democracia sólida, para ficarmos num exemplo clássico.

A cena de Rodrigues e as reflexões que elas me provocam habitaram com frequência a minha cabeça enquanto lia "Marrom e Amarelo", de Paulo Scott (Alfaguara), o mais recente "melhor livro de todos os tempos da última semana" – aqueles que, de repente, parecem ser lidos e incensados por todas pessoas que curtem literatura. Coisa raríssima, dessa vez os abundantes elogios são muito justos. É um livraço.

Em "Marrom e Amarelo" somos apresentados a Federico e Lourenço, irmãos que, apesar de filhos do mesmo pai e mãe, carregam na pele uma diferença que costuma ser crucial no Brasil: um é negro, enquanto o outro é pardo. É Federico, pardo, irmãos mais velho, bem menos sociável do que Lourenço, que puxa a história. Ele integra uma comissão do governo – sem mandatário especificado – responsável por discutir o futuro das cotas raciais. Entre pessoas que não estão nem aí para o assunto e outras que sugerem soluções absurdas, nos deparamos com elementos do racismo e do colorismo que marcam a nossa sociedade.

Só que enquanto Federico está vivendo atordoado em Brasília, pensando em soluções para um dos grandes problemas do Brasil, a amizade e lealdade a Lourenço se juntam a questões não resolvidas de décadas atrás para novamente tragá-lo à cidade onde nasceu e cresceu: Porto Alegre. No livro de Scott, o esfregão de Rodrigues se faz presente nas duas tessituras da história.

No plano macro há a crítica à dificuldade do Brasil se entender com seu passado e encarar com seriedade e maturidade os problemas decorrentes do racismo e do colorismo, cruciais na formação do país. Quanto aos irmãos, besteiras da juventude agem como uma força que os prende ao lugar de origem, servindo de amarra para que não se desgarrem da história à qual parecem fadados e impedindo mudanças substanciais.

Nos dois casos – discussões que beiram o surreal em Brasília e a assombrosa volta do que parecia enterrado –, por mais que haja algum progresso, estamos diante do momento em que pegamos o esfregão, colocamos no chão, fazemos o sinal do infinito e andamos para trás.

Como tantas vezes já dito sobre a obra, o leitor sai de "Marrom e Amarelo" com muito mais perguntas a se fazer a respeito dos temas centrais do título do que com alguma resposta. Autor do também necessário "Habitante Irreal" (Alfaguara), Scott não entrega nada facilmente àqueles que mergulham em suas páginas marcadas por idas e vindas no tempo e construções longas que podem se erguer como labirintos aos leitores desatentos.

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Sobre o autor

Rodrigo Casarin é jornalista pós-graduado em Jornalismo Literário. Vive em São Paulo, em meio às estantes com as obras que já leu e às pilhas com os livros dos quais ainda não passou da página 5.

Sobre o blog

O blog Página Cinco fala de livros. Dos clássicos aos últimos sucessos comerciais, dos impressos aos e-books, das obras com letras miúdas, quase ilegíveis, aos balões das histórias em quadrinhos.