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Mentiras e desprezo à ciência marcam história da proibição da maconha

Rodrigo Casarin

06/08/2019 10h09

Há alguns meses, descobriu-se que o governo brasileiro há mais de ano escondia um estudo feito pela Fundação Osvaldo Cruz que custou R$7 milhões aos cofres públicos. Os dados apurados pelo levantamento apontam que não há uma epidemia de drogas no país, diferente do que muitos políticos (e não só políticos) pregam por aí. Além disso, indicam que nossa maior preocupação nesse campo não deveria ser com a maconha, a cocaína ou o crack, mas com o álcool, droga experimentada por mais de 66% e utilizada com frequência por mais de 30% dos brasileiros. Aqui há mais alguns números estabelecidos pela pesquisa, que contraria parte do equivocado senso comum que há sobre o assunto.

A opção pela ignorância em detrimento da ciência não é uma novidade quando estamos falando sobre drogas. Lembrei do estudo engavetado enquanto lia a HQ "Cannabis – A Ilegalização da Maconha nos Estados Unidos", do estadunidense Box Brown, recém-lançada no Brasil pela Mino em tradução de Diego Gerlach. Graphic novel com uma pegada bastante didática, nela o quadrinista acompanha parte da história do cânhamo até sua chegada nas Américas – trazida pelos espanhóis que invadiram o atual território mexicano –, o paulatino sucesso da planta nos Estados Unidos e a famosa guerra contra ela e outras drogas deflagrada desde meados do século 20.

Numa sociedade fortemente racista e preconceituosa, proibir a erva que fazia mais a cabeça de latinos e negros do que de brancos era uma ótima forma para perseguir e encarcerar membros de grupos minoritários. Pouco importava que os estudos não corroborassem o discurso que se construía a respeito dos consumidores da cannabis. Se a ciência não indicava que os maconheiros eram criaturas terríveis, capazes de cometer as maiores atrocidades por fumar um baseado, que a retórica desse conta de se criar uma monstruosa caricatura das moças e rapazes dos dedos amarelados. Mesmo sem provas, a convicção bastava para convencer a sociedade de que a guerra contra a maconha, colocada no mesmo balaio de outras drogas perseguidas, era mesmo fundamental, numa tendência que se espalharia pelo mundo.

Harry Jacob Anslinger, comissário do serviço de narcóticos dos Estados Unidos entre as décadas de 1930 e 1960, foi um dos responsáveis por criar boa parte das mentiras que até hoje são repetidas por papagaios. É dele, por exemplo, a teoria do trampolim, aquela balela nunca comprovada (e inúmeras vezes desmentida) de que a maconha seria a porta de entrada para drogas mais pesadas.

No livro, em uma cena sobre o assunto, o então presidente Richard Nixon fica furioso ao receber um relatório apontando que a maconha não causava dependência física e que a teoria do trampolim era falsa. O estudo ainda sugeria que o governo revisse a posição proibicionista do país com relação à cannabis. Numa espécie de consonância anacrônica com o governo brasileiro e o crescente ódio contra estudos que desagradam mandatários, Nixon despreza as informações e rasga o relatório – que aquilo ficasse longe do público, pelo suposto bem do país.

"Cannabis", de Box Brown, não é apenas uma boa HQ sobre a história da maconha (com foco principal num passado recente da erva, inclusive com olhar atento ao seu uso medicinal), mas uma narrativa que mostra como seres obtusos com grande poder em mãos podem, com base em mentiras descaradas e apostando no medo e na ignorância de boa parte da população, mexer como bem entendem com as cordinhas da sociedade. Não custa lembrar que, desde que a guerra às drogas foi anunciada, a maneira como governos pelo mundo lidam com a questão – tiro, porrada, morte, encarceramento, ignorância… – está na base da enorme violência que devasta cidades e países.

Veja algumas páginas de "Cannabis" (clique nas imagens para ampliá-las):

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Sobre o autor

Rodrigo Casarin é jornalista pós-graduado em Jornalismo Literário. Vive em São Paulo, em meio às estantes com as obras que já leu e às pilhas com os livros dos quais ainda não passou da página 5.

Sobre o blog

O blog Página Cinco fala de livros. Dos clássicos aos últimos sucessos comerciais, dos impressos aos e-books, das obras com letras miúdas, quase ilegíveis, aos balões das histórias em quadrinhos.