Mensagens de Moro lembram “justiça de boteco” levada ao teatro por Suassuna
Rodrigo Casarin
11/06/2019 09h35
No último ato de "A Pena e a Lei", peça escrita por Ariano Suassuna em 1959, Cheiroso, incorporando Jesus Cristo, absolve os outros personagens da história, todos recém-mortos: "Erros, cegueiras, embustes, enganos, traições, mesquinharias, tudo o que foi a trama de suas vidas, perde a importância de repente, diante do fato de que vocês acreditaram finalmente em mim".
"A Pena e a Lei" tem muito de "O Auto da Compadecida", trabalho mais famoso de Suassuna, publicado em 1955. Como no texto transformado em filme e série global, em "A Pena e a Lei" cabe às divindades católicas a palavra final sobre as atitudes dos homens na Terra. São desfechos bonitos, mas pouco confiáveis para o que nos interessa aqui. Sem garantia da existência de algum tipo de juízo superior, precisamos nos apegar à justiça mundana mesmo. Portanto, foquemos nas duas primeiras partes de "A Pena e a Lei", livro que há pouco foi reeditado pela Nova Fronteira.
Na peça, há sombras humanas para tudo que é lado. A valentia e a vaidade corrompem até aqueles que, teoricamente, deveriam zelar pelo que é justo. Artimanhas, provas capengas e palavras de "homens de bem" podem ser decisivas para mudar o destino de pessoas que, dependendo da posição que ocupam, perdem a presunção da inocência e precisam provar que não são criminosas. Rosinha, o justiceiro teoricamente responsável pela aplicação das leis locais, define-se como uma "autoridade [que] é homem para topar qualquer parada! Mato um, esfolo, rasgo, estripo, faço o diabo!". Simbólico que o manda-chuva assuma adotar um comportamento tão avesso aos códigos escritos.
O que move a história de "A Pena e a Lei" é a moral maleável que norteia a tentativa de se fazer justiça onde um sistema jurídico não existe. É uma ideia de justiça que não questiona arbitrariedades ou parcialidades e tem fé de que talvez uma injustiça possa ser compensada por alguma outra injustiça, o que resulta numa justiça torpe, mas, no final das contas, justa – o famoso fazer o certo por linhas tortas.
Após a série de denúncias feitas pelo The Intercept Brasil sobre como o então juiz Sergio Moro e o procurador Deltan Dallagnol arquitetaram diversas etapas da Lava-jato, a impressão que dá é que ambos se comportavam como figuras que creem muito mais nessa justiça de boteco do que no próprio sistema judiciário que integram. Lendo as conversas entre os dois, temos a impressão de que ambos, como sumidades, possuem a certeza do que é melhor para o Brasil e não veem problemas em ultrapassar limites éticos (e provavelmente legais) para alcançar seus objetivos. Se os personagens de Suassuna acreditam que a justiça pode acontecer por linhas tortas, vemos principalmente na figura de Moro alguém que acredita ser legítimo entortar a linha pela qual deveria zelar, detonando os meios para alcançar os fins de antemão desejados.
Agora as tramoias do juiz que virou ministro da Justiça começam a aparecer e algumas falas de Cheiroso e especialmente de Cheirosa, sua companheira – que define "A Pena e a Lei" como "A excelente farsa de moralidade" –, soam como cunhadas diretamente para Moro. "A vida traiu Rosinha,/ traiu Borrote também./ Ela trai a todos nós,/ quando vamos, ela vem", diz ele. "Provei que é inconveniente/ ter a fama de valente,/ difícil de carregar!", rebate ela que, em outro momento, condensa: "Se cada qual tem seu crime,/ seu proveito, perda ou dano,/ cada qual seu testemunho,/ se cada qual tem seu plano,/ a nota, mesmo, da peça/ deveria ter sido essa/ de 'Justiça por engano'".
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Sobre o autor
Rodrigo Casarin é jornalista pós-graduado em Jornalismo Literário. Vive em São Paulo, em meio às estantes com as obras que já leu e às pilhas com os livros dos quais ainda não passou da página 5.
Sobre o blog
O blog Página Cinco fala de livros. Dos clássicos aos últimos sucessos comerciais, dos impressos aos e-books, das obras com letras miúdas, quase ilegíveis, aos balões das histórias em quadrinhos.