Cartas raras prometem esmiuçar a conturbada relação entre Lobato e Taubaté
Rodrigo Casarin
18/04/2019 08h04
Uma série de cartas e documentos que revelam muita da relação entre Monteiro Lobato e Taubaté – e o Vale do Paraíba, por extensão – começarão a chegar ao grande público por meio do site Almanaque Urupês. A promessa é que, a partir de hoje, leitores tenham acesso a materiais que mostram como a cidade natal do criador de "O Sítio do Picapau Amarelo" se relacionou – e se engalfinhou – com um de seus filhos mais ilustres.
Se num primeiro momento Lobato foi festejado por seus conterrâneos, logo essa visão mudou por conta de livros como "Cidades Mortas" e a criação de personagens como Jeca Tatu, que desagradaram principalmente a elite interiorana. Com direito a reclamações de políticos e ataques contra Lobato até mesmo em audiências da câmara municipal de Taubaté, ao longo da primeira metade do século 20 há um litígio constante entre o artista e a cidade, fato reforçado em trocas de cartas que o escritor manteve com amigos como Cesídio Ambrogi, também taubateano, autor de obras como "Poemas Vermelhos" e "As Moreninhas", esta editada pelo próprio Lobato. "A nossa Ordem Social é uma coisa tão suja e sórdida que o meu consolo hoje é um só: saber que vou morrer e afastar-me da sujeira", chega a desabafar o autor de "Urupês".
Apesar de não serem inéditas – pesquisadores e alguns jornalistas já tiveram acesso a essas correspondências –, elas jamais estiveram à disposição do público geral e com as devidas contextualizações pela perspectiva da região onde o escritor nasceu e cresceu. "As cartas se tornam verdadeiramente interessantes quando contextualizadas. Passagens que estavam nas entrelinhas são pouco conhecidas ou desconhecidas dos biógrafos de Lobato. Os personagens e as tramas taubateanas que estão nas entrelinhas das cartas de Lobato a Cesídio, por exemplo, contribuem muito para conhecermos a civilização do Vale do Paraíba da primeira metade do século", diz Pedro Rubin, um dos idealizadores e editores do Almanaque Urupês.
As primeiras cartas entram no ar neste 18 de abril, data do aniversário de Lobato e escolhida para marcar o Dia Nacional do Livro Infantil. A promessa é que até junho duas cartas sejam publicadas por semana e que até o final do ano todo o material, que ainda contemplará alguns vídeos, esteja no ar. A empreitada se inicia em meio à Semana Monteiro Lobato, festival literário que acontece entre os dias 16 e 21 deste mês no Taubaté Shopping, patrocinador do Almanaque Urupês.
Veja trechos de algumas cartas escritas de Lobato para Cesídio (todas são de 1943, com o escritor já na reta final de sua vida, exceto a última, escrita em 1944):
Literatura X "Literatura"
"Quanto ao romance acho que você, como eu, como todo mundo, anda pecando por excesso de literatura. Tive a revelação disso agora – agora que é tarde e já estou me preparando para ir pregar em outra freguesia. E essa revelação me veio por intermédio duma mulher, a Sra. Leandro Dupré*. Para que compreendas o meu pensamento, mando-te um romance dela que acaba de sair. Li-o em provas – e arregalei os olhos. Aprendi, afinal, a diferença entre 'literatura' e literatura; entre literatura e vida. E sem que ela me pedisse, sem que sequer eu a conhecesse, escrevi dum jacto 12 páginas de prefácio. Isso, para pôr o dedo numa coisa que me parece muito séria: a diferença de literatura aspada e literatura sem aspas. Leia-o e estude o caso. Você está moço e ainda pode aproveitar-se da lição. O segredo do encanto dessa mulher parece-me estar na absoluta ausência de 'literatura' – e nós não sabemos escrever sem literatura. Nossos mestres de arte (sobretudo Coelho Neto) nos inocularam uma noção errada de arte. Eles é que nos asparam literariamente. Machado de Assis foi uma reação – mas quem ainda compreende Machado de Assis?"
*Sra. Leandro Dupré era a forma como Maria José Dupré assinava romances como "Eramos Seis", ao qual Lobato se refere.
Fim da liberdade de procriar
"Eu se fosse estado novo, fazia uma lei acabando com a liberdade de procriar. Para ter filho era necessário um atestado de habilitação e uma permissão especial. A gente feia ficava proibida de reproduzir-se. Outros teriam licença para um filho só. Outros, dois e três. E alguns teriam licença sem limites. Você, meu caro, entrava para este grupo. E não precisava produzir filhos só em casa – teria licença de fazer roças grandes, por montes e vales".
"Morrer e afastar-me da sujeira"
"A nossa Ordem Social é uma coisa tão suja e sórdida que o meu consolo hoje é um só: saber que vou morrer e afastar-me da sujeira. Quando meus filhos morreram senti uma grande satisfação íntima que nem aqui em casa compreenderam. É que os vi livres da Sordície Reinante. E invejo-os, e anseio para que também me chegue a hora de espapar ao imenso campo de concentração da Estupidez Dominante, aqui e em toda parte. Mas mesmo quem chega a esta infinita descrença no Homo, não pode furtar-se ao prazer do sonho – à ilusão do Quem Sabe? E o surto dum Sítio aí, como vocês imaginam, com possibilidade de reprodução em outros pontos desta terra, me põe um pouco de luz cor-de-rosa ou azul na alma".
Sítio emergindo
"Fico ciente de que o Sítio vai emergindo da terra e que os big shots da finança local também apoiam a ideia. Duma coisa eu tenho certeza: a originalidade da ideia. Creio mesmo que é a primeira vez na vida do Taubaté que apareceu uma ideia própria, não copiada de ninguém. E se soubermos fazer propaganda da coisa depois de construída, de modo que os sítios se espalhem, Taubaté torna-se-á muito mais sonoramente conhecido do que o é efeito daquela 'piadinha':
Cavalo pangaré
Mulher que mija em pé
Gente de Taubaté".
"Patifes que nos governam"
"Outrora o pensamento e a sátira dispunham das asas dos jornais e livros, e dos teatros e das conferências públicas. Os inefáveis patifes que nos governam tomaram para seu exclusivo essas velhas asas – e só ficou para o pensamento livre a asinha frágil e cara das cópias mimeografadas. Periodicamente recebo aqui coisas anônimas que são o débil protesto de um povo asfixiado, talvez o último, porque as ditaduras muito prolongadas acabam mergulhando o povo naquele absoluto servilismo de alma que destruiu o velho Oriente".
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Sobre o autor
Rodrigo Casarin é jornalista pós-graduado em Jornalismo Literário. Vive em São Paulo, em meio às estantes com as obras que já leu e às pilhas com os livros dos quais ainda não passou da página 5.
Sobre o blog
O blog Página Cinco fala de livros. Dos clássicos aos últimos sucessos comerciais, dos impressos aos e-books, das obras com letras miúdas, quase ilegíveis, aos balões das histórias em quadrinhos.