80 tiros, deboche, Graciliano Ramos e a perda do nosso freio moral
Rodrigo Casarin
17/04/2019 10h55
80 tiros contra um carro onde estava uma família. O pai, que dirigia, morto. A mãe, desesperada, procura apoio dos próprios integrantes do Exército que efetuaram os disparos; garante ter tido um cínico deboche como resposta. Não é de hoje que os humilhados somos todos nós. Matar parece ser uma ação cada vez mais fácil, mais banal, por aqui. Num país onde presidente fala em metralhar adversários políticos, governador promete que a polícia mirará em "cabecinhas e pimba" e boa parte da população bate palma para esses vômitos, são muitos os discursos que tornam mais fácil para representantes do Estado puxarem o gatilho contra quem bem entender.
Até onde sei, matar nunca foi uma atividade exatamente fácil. Seja em entrevistas, seja em livros que expõem o trabalho de assassinos (respaldados ou não por uma farda qualquer), quase sempre aquele que mata afirma que é muito difícil acabar com uma vida pela primeira vez, fazer o debute na carreira macabra. Depois, aos poucos, a ação se torna banal, mas não sem cobrar seu preço, pago principalmente pela sociedade, mas também pelas pessoas próximas ao matador, que paulatinamente vê um ser humano se transformando em monstro.
Escrevo isso porque parei para confrontar esses crimes que se tornaram parte do nosso cotidiano com uma das cenas mais marcantes de "Angústia", romance de Graciliano Ramos que acaba de ganhar nova edição pela Record, com posfácio de Silviano Santiago. Lá pelas tantas, Luís da Silva recorda de quando deu cabo da vida do poderoso Julião Tavares, o ricaço que lhe roubou Marina, sua grande musa – e se você é desses que acha que uma obra monumental como "Angústia" perde a força após a revelação de partes importantes de seu enredo, é melhor parar por aqui.
Carregando a corda que servirá para enforcar o grande inimigo, Luís titubeia quando finalmente encontra Julião; torce para que sua vítima dê no pé, saia da sua vista. "Por que era que o miserável não corria, não se livrava dos meus instintos ruins? […] Eu queria que ele se afastasse de mim", recorda no fluxo de memórias que constroem o livro publicado pela primeira vez em 1936. Só que Julião não se dá conta do perigo e Luís não recua em seu intento. Impulsionado pela adrenalina, estrangula Julião. Tomado pelo poder, de cara se empolga com a situação:
"Tudo é absurdo, é incrível, mas realizou-se naturalmente. A corda enlaçou o pescoço do homem, e as minhas mãos apertadas afastaram-se. Houve uma luta rápida, um gorgolejo, braços a debater-se. Exatamente o que eu havia imaginado. O corpo de Julião Tavares ora tombava para a frente e ameaçava arrastar-me, ora se inclinava para trás e queria cair em cima de mim. A obsessão ia desaparecer. Tive um deslumbramento. O homenzinho da repartição e do jornal não era eu. Esta convicção afastou qualquer receio de perigo. Uma alegria enorme encheu-me. Pessoas que aparecessem ali seriam figurinhas insignificantes, todos os moradores da cidade seriam figurinhas insignificantes".
Só que, apesar de ter se tornado um assassino, Luís carrega em si a dualidade imposta pelo seu freio moral, severamente abalado pelo ato que acabou de concretizar, mas também responsável por fazer com que o personagem logo caia em si e passe a viver seu martírio. Superado o momento em que o agora matador extrapola sua mediocridade e se vê como algo maior do que um "homenzinho da repartição e do jornal", precisa encarar a nova condição. O que fazer com o tão pesado corpo de Julião? Quando o assassinato será descoberto? Como será julgado? "Tudo perdido. A polícia, a cadeia. Denunciar-me-ia no primeiro interrogatório". Enquanto isso, o resto do mundo segue insuportavelmente normal, alheio à sua convulsão emocional, à certeza de que 30 anos de prisão já lhe aguardam, à recusa de viver o dia seguinte.
Luís deixou de ser uma pessoa comum (um cidadão de bem, talvez dissessem por aí) e se tornou um assassino. Mas não foi uma transformação fácil. Titubeou diante de sua vítima. Depois, com o fim da brevíssima euforia, passou a ser consumido pela culpa. Como disse, esteve numa batalha constante contra o seu próprio freio moral. Freio moral que parece ter se perdido, pelo menos entre muitos brasileiros. Brasileiros que comemoram mortes. Brasileiros que pedem ainda mais mortes. Brasileiros que atiram, matam e debocham de suas vítimas enquanto corpos metralhados sequer começaram a esfriar.
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Sobre o autor
Rodrigo Casarin é jornalista pós-graduado em Jornalismo Literário. Vive em São Paulo, em meio às estantes com as obras que já leu e às pilhas com os livros dos quais ainda não passou da página 5.
Sobre o blog
O blog Página Cinco fala de livros. Dos clássicos aos últimos sucessos comerciais, dos impressos aos e-books, das obras com letras miúdas, quase ilegíveis, aos balões das histórias em quadrinhos.