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Pais acusam livro de Ana Maria Machado de fazer apologia ao suicídio

Rodrigo Casarin

07/09/2018 10h18

"Como as compras só chegaram quando ele estava no colégio, ainda teve que esperar a volta, o jantar e a hora da sobremesa. Quase não aguentava mais. Ai também resolveu que o melhor era deixar para engasgar com a maçã na hora de deitar, quando estivesse sozinho. E que a família dele era tão desligada dessas coisas que era até capaz de alguém dar um tapa nas costas dele só para desengasgar, e aí estragava o plano todo".

Pais de diversos cantos do Brasil estão coléricos por conta desse trecho de "O Menino que Espiava Pra Dentro", de Ana Maria Machado, publicado originalmente em 1983 e que é adotado em escolas pelo país. Mensagens divulgadas nas redes sociais acusam a autora de fazer apologia ao suicídio. Na história, Lucas, o protagonista, pensa em engasgar com a maçã para, dessa forma, acessar o mundo da imaginação. Desde 2008 o título é editado pela Global, que já vendeu mais de 92 mil exemplares do livro, o que dá uma dimensão de quanto o trabalho já circulou por aí, nunca ter causando incômodos do tipo.

Desde ontem, entretanto, uma enxurrada de mensagens contra a obra e contra a autora começou a se espalhar pela Internet. No Google Books, por exemplo, é possível ler recados como "Que Deus tenha misericórdia dessa autora. Esse livro apresenta uma maneira inescrupulosa de como uma criança pode provocar um suicídio. Que o MEC [Ministério da Educação] reveja e retire esse livro de circulação", "Livro impróprio para crianças, simplesmente as ensina a se suicidar. Como pode uma autora renomada como a Ana Maria Machado ter escrito e ainda manter um livro como este em circulação?" e "Livro lixo. Instiga a criança ao suicídio".

O mesmo tom se repete em postagens no Facebook – onde a página oficial de Ana Maria está desde a tarde de ontem fora do ar -, no Instagram, no WhatsApp, na plataforma de leitores Skoob e no Twitter, rede na qual, por sua vez, começam a surgir vozes em defesa da autora. "Estão perseguindo a Ana Maria Machado por um trecho específico de uma obra sem sequer compreender seu todo", argumenta, por exemplo, uma internauta. Concordo absolutamente.

A imagem do livro que tem circulado pelas redes sociais,

Achar que "O Menino que Espiava Pra Dentro" faz apologia ao suicídio de crianças por conta da cena da maçã seria o mesmo estapafúrdio de acusar as histórias do Superman de incentivar que pequenos se atirem da janela pensando que, por ter um lençol no pescoço e uma cueca sobre a calça, podem voar. Além disso, ao longo de toda a narrativa fica claro que ele fala sobre o valor da imaginação, mas também sobre o quanto a nossa própria realidade pode ser boa e surpreendente.

Lucas não morde a maçã para dar cabo de sua vida, apenas quer passar mais tempo no mundo de sua cabeça. E é o que acontece, mas não porque fica entre a vida e a morte. Ele simplesmente dorme logo após comer a fruta, como mostra a sequência provavelmente ignorada por parte significativa daqueles que se queixam de Ana Maria. No desdobramento, após a página que é alvo das queixas, o garoto está no mundo lúdico e onírico, proporcionado pelos seus belos sonhos, que são atrapalhados por uma mãe que, tal qual uma princesa, o desperta porque já deu o horário e há coisas boas o aguardando no mundo real.

Só que a moda da vez é a inquisição tecnológica: julgar sem conhecer e gritar nas redes sociais. A Global, que se posicionou com uma nota que está no final do texto, também tem recebido reclamações tanto pela Internet quanto por telefone, com pessoas exigindo que o título seja retirado de circulação. Já adquirido em compras governamentais e distribuído para escolas públicas, "O Menino que Espiava Pra Dentro" é indicado para crianças a partir de oito anos e busca instigar a curiosidade e discutir exatamente se é possível viver apenas no mundo da imaginação – dentre as atividades propostas pelo material de auxílio feito pela editora há a sugestão, por exemplo, para que alunos "criem o dia de espiar para dentro e espiar para fora" e "escolham uma forma de socializar as descobertas".

Já Ana Maria Machado é uma das escritoras mais respeitadas do país. São de sua autoria livros como "Bisa Bia, Bisa Bel", "Menina Bonita do Laço de Fita" e "Quem Manda na Minha Boca Sou Eu!". Dentre os diversos prêmios que ganhou estão o Machado de Assis e o Hans Christian Andersen, considerado o Nobel da literatura infantojuvenil, que recebeu em 2000. É membro da Academia Brasileira de Letras, entidade que presidiu entre 2012 e 2013; atualmente é a Primeira-Secretária da casa.

Veja a nota oficial emitida pela Global:

A Global Editora tem recebido algumas manifestações sobre a obra "O Menino que Espiava Pra Dentro", de Ana Maria Machado. As mensagens acusam o livro de incitar o suicídio entre as crianças. Precisamente, trata-se do texto da página 23, em que o menino come uma maçã para ingressar no mundo dos sonhos – um processo poético para a criança entrar no mundo da imaginação.

Esclarecemos que as referências à maçã e ao fuso são alusões às histórias da Branca de Neve ou da Bela Adormecida e constituem parte integrante do universo da história, sustentando o argumento de que imaginar pode ser muito bom, mas a realidade externa se impõe. Conversar com os outros (como a mãe) é fundamental, e a afetividade que nos faz felizes está ligada a seres vivos e reais.

O livro foi publicado em 1983 e até o momento não havia despertado nada de negativo nessa área. Inclusive, trata-se de uma obra adotada em diversas escolas brasileiras.

Ana Maria Machado é considerada pela crítica como uma das mais versáteis e completas escritoras brasileiras contemporâneas, com mais de 100 livros publicados no Brasil e em mais de 17 países, somando mais de 20 milhões de exemplares vendidos. O seu carinho e cuidado com a educação de nossas crianças e a formação de leitores sempre foi sua prioridade. Portanto, em momento algum, escreveria algo que pudesse prejudicá-las.

Todo o nosso apoio e carinho à Ana Maria Machado!

Equipe Global Editora

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Sobre o autor

Rodrigo Casarin é jornalista pós-graduado em Jornalismo Literário. Vive em São Paulo, em meio às estantes com as obras que já leu e às pilhas com os livros dos quais ainda não passou da página 5.

Sobre o blog

O blog Página Cinco fala de livros. Dos clássicos aos últimos sucessos comerciais, dos impressos aos e-books, das obras com letras miúdas, quase ilegíveis, aos balões das histórias em quadrinhos.