Cancelamento de mostra LGBT após gritaria do MBL comprova nosso retrocesso
Rodrigo Casarin
11/09/2017 10h42
O Santander Cultural cancelou neste final de semana a exposição "Queermuseu – Cartografias da Diferença na Arte Brasileira". A mostra, que contava com nomes como Lygia Clark, Alfredo Volpi e Cândido Portinari num total de 85 artistas e cerca de 270 itens que dialogam com o universo LGBT, estreou em meados de agosto e iria até o dia 8 de outubro, em Porto Alegre.
Iria. Uma gritaria virtual capitaneada pelo Movimento Brasil Livre (MBL) fez com que a organização antecipasse o fim da exposição. Os patrulheiros alegavam que certas peças do "Queermuseu" faziam apologia à zoofilia e à pedofilia, além de se sentirem incomodados com obras com referências a ícones religiosos, como Jesus Cristo.
"Pedimos sinceras desculpas a todos os que se sentiram ofendidos por alguma obra que fazia parte da mostra. O objetivo do Santander Cultural é incentivar as artes e promover o debate sobre as grandes questões do mundo contemporâneo, e não gerar qualquer tipo de desrespeito e discórdia. Nosso papel, como um espaço cultural, é dar luz ao trabalho de curadores e artistas brasileiros para gerar reflexão", escreveu o Santander Cultural em sua página do Facebook após o cancelamento da exposição. "Quando a arte não é capaz de gerar inclusão e reflexão positiva, perde seu propósito maior, que é elevar a condição humana", completaram.
Não sei o que é pior: a posição do MBL e sua total incompreensão sobre a arte, as pessoas que compraram o discurso do grupo ou a posição adotada pelo Santander Cultural. Mas vamos daqui pra lá.
É possível que se promova um "debate sobre as grandes questões do mundo contemporâneo" sem que se gere discórdia e, eventualmente, ofenda alguns mais propensos a sentir dor quando outros ganham visibilidade e adquirem direitos? Creio que não. Ao dar espaço para uma minoria hoje, automaticamente grupos reacionários gritam. O importante é que se resista aos berros para, quem sabe dessa forma, gerar a reflexão na cabeça das mentes mais obscuras.
Com a nota, a organização do Santander Cultural também se mostra tão apartada da arte quanto o próprio MBL. A arte pode promover debates. A arte pode ser insossa (ou seja, não gerar discórdia). A arte pode ser inclusiva. A arte pode levar à reflexão positiva (ainda que eu não saiba exatamente o que é uma "reflexão positiva"). A arte pode "elevar a condição humana". Sim, a arte pode fazer tudo isso, mas a arte não tem a obrigação de fazer nada disso. São consequências, não causas da arte. Mas, para que alcancemos essas consequências, não podemos patrulhar as criações, pelo contrário, é preciso de liberdade para que criemos os diversos significados que uma obra pode ter.
Agora sobre o MBL e seus fantoches. Falar em apologia à zoofilia ou à pedofilia ao ver um quadro ou uma colagem que passa por esses temas é, mais uma vez, não compreender a arte em toda sua dimensão. Um quadro na parede não faz apologia a nada, apenas propõe algo, retrata uma situação ou sensação. A partir disso, cabe aos observadores construírem um significado para aquilo. Quer achar que é uma simples promoção da pedofilia ou da zoofilia? Sim, é um direito. Mas não é possível limitar as interpretações à tal visão capenga.
Na história, aliás, são muitas as representações artísticas que tratam do sexo entre animais e humanos. Em pinturas, esculturas e na literatura é possível encontrar orgias envolvendo bodes, cavalos, elefantes, cabritas, galinhas… Sobre a pedofilia, evoco o exemplo clássico de obra censurada por tal motivo: "Lolita", de Vladimir Nabokov. Até hoje muita gente discute as intenções do professor Humbert Humbert com a ninfeta Dolores Haze. No entanto, ainda bem, até outrora ninguém andava pedindo para que o livro fosse proibido de circular no Brasil.
Quem sabe o MBL não encabeça uma nova campanha, agora pedindo a proibição de Nabokov. E depois de Henry Miller, Marquês de Sade, Pauline Réage, Anaïs Nin, Milo Manara… Calar a arte é mesmo um ótimo caminho para o retrocesso que aparentam desejar.
Sobre o autor
Rodrigo Casarin é jornalista pós-graduado em Jornalismo Literário. Vive em São Paulo, em meio às estantes com as obras que já leu e às pilhas com os livros dos quais ainda não passou da página 5.
Sobre o blog
O blog Página Cinco fala de livros. Dos clássicos aos últimos sucessos comerciais, dos impressos aos e-books, das obras com letras miúdas, quase ilegíveis, aos balões das histórias em quadrinhos.