Ódio nos EUA: Tupac e Angie Thomas mostram por que “vidas negras importam”
Rodrigo Casarin
23/08/2017 09h24
"Ouve só isso. – Ele aponta para mim, o que quer dizer que vai entrar em um dos momentos filosóficos de Khalil. – 'Pac disse que Thug Life, 'vida bandida', queria dizer The Hate U Give Little Infants Fucks Everybody, ou 'o ódio que você passa pras crianças fode com todo mundo".
Esse ódio mencionado pelo rapper Tupac foi elemento fundamental para que um policial assassinasse Khalil. O jovem dirigia seu carro quando foi parado sem motivo aparente algum, a não ser o fato de ser negro. A autoridade o arrancou do veículo, o tratou de modo grosseiro e abusivo e, ao cabo, achando que estava sob ameaça, deu tiros fatais nas costas do adolescente.
Quem estava com Khalil no veículo era Starr, sua quase irmã, que no final da infância já tinha visto uma outra amiga ser assassinada. Não foi à toa que, aos 12 anos, teve uma conversa séria com seus pais. Naquele papo lhe ensinaram duas lições essenciais para a vida: de onde vinham os bebês e como ela deveria se portar caso fosse parada por um policial – "Faça o que mandarem você fazer. Mantenha as mãos à vista. Não faça movimentos repentinos. Só fale quando falarem com você". O ódio há muito semeado obrigava o casal a ter aquele diálogo com a filha, a segunda lição poderia ser fundamental para que ela, uma negra que cresceu em um gueto dos Estados Unidos, sobrevivesse.
É Starr quem protagoniza e narra a história de "O Ódio Que Você Semeia", de Angie Thomas, há pouco lançado no Brasil pela Galera. Primeiro romance da autora, o livro está ancorado em assassinatos como os de Oscar Grant e Michael Brown, ambos negros e mortos por policiais em situações nas quais não ofereciam risco algum. Para denunciar esse tipo de violência que surgiram movimentos como o "Black Lives Matter" ("Vidas Negras Importam"). A obra de Angie, que chegou a liderar listas dos mais vendidos nos Estados Unidos, virou um dos símbolos dessa resistência.
"Vidas Negras Importam" X "Vidas Brancas Importam"
Após o policial assassinar Khalil, a vida do jovem começa a ser revirada em busca de elementos que o desumanizem, algo fundamental para que sua aniquilação seja justificada aos olhos da sociedade e a autoridade que o matou seja inocentada. Com o desenrolar do caso, o bairro onde Starr vive se torna um pandemônio, com ações que provocam reações e geram novas ações em uma crescente dos mais diversos tipos de violência. Mais uma vez, o ódio que fez com que o policial racista matasse um jovem que não lhe apresentava perigo algum se transformou em um enorme ciclo de mais preconceitos e agressões, sempre com os mais pobres e subjugados levando a pior.
"Papai me disse uma vez que tem uma fúria que é passada para todos os negros pelos ancestrais, gerada no momento em que eles não conseguiram impedir que os donos de escravos machucassem suas famílias. Papai também disse que não tem nada mais perigoso do que a hora em que essa fúria é ativada", registra Starr, filha de um ex-traficante que, após cumprir pena, passou a administrar um pequeno mercado e buscou se afastar de criminosos, algo que não é tão simples quanto pode parecer para muitos.
Com personagens complexos, quase todos vítimas e geradores da violência, e abordando o racismo sistêmico, o preconceito, o orgulho negro e a necessidade de se resistir, "O Ódio Que Você Semeia" é um livro raro na literatura juvenil e relevante para entendermos o momento vivido pelos Estados Unidos. "Acho que [isso] vai mudar um dia. Como? Não sei. Quando? Não sei mesmo. Por quê? Porque sempre vai existir alguém para lutar. […] As pessoas estão percebendo e gritando e marchando e exigindo. Não estão esquecendo. Acho que essa é a parte mais importante. […] Nunca vou ficar calada. Prometo", registra Starr no final da narrativa.
Gritar, marchar, exigir e nunca se calar incomoda. No caso, os incomodados são os racistas. Uma consequência imediata disso é a saída do esgoto de grupos bizarros que defendem a lunática ideia de supremacia branca (junte ao lodo um presidente que parece não se importar muito com discursos de ódio). Um dos gritos mais ouvidos nas recentes manifestações promovidas por extremistas e nazistas nos Estados Unidos era ""White Lives Matter"", "Vidas Brancas Importam", justamente uma resposta ao movimento "Black Lives Matter". Claro que todas as vidas importam, no entanto, pelo que consta e só para ficarmos em um exemplo caro ao universo do livro, brancos não andam sendo aniquilados por policiais que permanecem impunes e ninguém deseja que isso passe a acontecer, o que torna tal movimento afirmativo no mínimo dispensável.
Quando as minorias gritam por igualdade, o efeito colateral é que parte daqueles que sempre tiveram seus direitos garantidos se sinta ameaçada, como se esses direitos só pudessem ser plenos para determinado tipo de pessoa.
Grito no Brasil
O Brasil tem seus próprios demônios, claro, muitos deles bem parecidos com os dos Estados Unidos, e a literatura também tem sido uma forma para tratarmos dessas nossas mazelas. Há alguns meses a revista eletrônica São Paulo Review vem publicando uma série de textos inéditos em homenagem a crianças assassinadas em comunidades do Rio de Janeiro. Autores como Noemi Jaffe, João Carrascoza e Cristina Judar – são mais de 30 nomes no total – mostram que o ódio passado para as crianças aniquila tudo por aqui também e que, como diz Starr, gritar é preciso.
Sobre o autor
Rodrigo Casarin é jornalista pós-graduado em Jornalismo Literário. Vive em São Paulo, em meio às estantes com as obras que já leu e às pilhas com os livros dos quais ainda não passou da página 5.
Sobre o blog
O blog Página Cinco fala de livros. Dos clássicos aos últimos sucessos comerciais, dos impressos aos e-books, das obras com letras miúdas, quase ilegíveis, aos balões das histórias em quadrinhos.