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Lira Neto: como o funk hoje, o samba também era considerado um gênero pobre e de extremo mau gosto

Rodrigo Casarin

04/05/2017 14h41

"Nasceu maldito e cativo. Cresceu liberto de amarras". É assim que o jornalista e escritor Lira Neto olha para o samba, gênero musical que investigou profundamente para escrever a trilogia "Uma História do Samba", cujo primeiro volume, "As Origens" (Companhia das Letras), que foca no período entre o final do século 19 e o início da década de 1930, chegou há pouco às livrarias.

Estilo que nasceu marginalizado – como acontece com tantos outros hoje –, nesse volume inaugural o autor, consagrado pela biografia de Getúlio Vargas, apresenta as raízes do samba, as tentativas de se silenciar as batucadas, sua popularização e, enfim, o projeto do Estado Novo para que o gênero se tornasse um símbolo de identidade nacional – algo questionado pelo escritor.

Tendo como cenário um Rio de Janeiro que tentavam "desafricanizar" em nome da "modernidade e da civilização", por meio do retrato traçado por Lira podemos ver que o Brasil daquela primeira metade do século 20 era bastante semelhante ao Brasil de hoje, seja pelo tratamento dado aos mais pobres e pelo modo que a suposta elite intelectual comumente se porta, seja pela situação governamental.

"O país vivia uma intensa radicalização política, com alegadas ameaças de convulsão na ordem pública. O governo chegou até a cogitar o cancelamento do carnaval por medida de segurança. O clima fechara devido às acusações de que um dos candidatos à sucessão presidencial, o mineiro Artur Bernardes – apoiado pela política do café com leite firmada entre oligarquias de São Paulo e Minhas Gerais -, escrevera duas cartas desancando as Forças Armadas e classificando o ex-presidente Hermes da Fonseca como um 'sargentão sem compostura'", registra o autor. "Escrever sobre a história do samba é também escrever sobre todo o nosso abominável histórico de violências, arbitrariedades, injustiças e preconceitos", complementa em entrevista concedida ao blog.

Cartola – Acervo Iconographia.

São diversos os grandes nomes que surgem como personagens no livro de Lira: Noel Rosa, Cartola, Pixinguinha… Além disso, há pioneiros como Sinhô e sambistas de inquestionável qualidade, conforme aponta o autor, como Paulo da Portela, Caninha, Heitor dos Prazeres, Bide e Marçal. Os famosos malandros também estão por lá. Eram pessoas que "viviam de biscates e eternas virações" e tinham "muita honra e orgulho" de serem chamados pelo epíteto, "não viam nisso nenhuma espécie de mancha moral. A malandragem, entendiam, era uma maneira de não ceder à lógica perversa que condenava negros e mestiços à mendicância, ao desemprego e à pobreza extrema". A malandragem, no futuro, seria romantizada, mas a realidade que viviam, como apontado, era bem diferente da figura simpática, sedutora e boa-praça da mitologia urbana.

"Na vida de carne e osso, as adversidades da malandragem não ofereciam margens para apologias e idealizações idílicas. Vários terminaram seus dias precocemente, em trocas de navalhadas e sangrentas brigas de rua. Outros tiveram o organismo arruinado pela sífilis ou pela tuberculose, moléstias adquiridas nas infindáveis noites de arruaça e boemia", escreve o autor.

O segundo volume de "Uma História do Samba" focará na chamada Época de Ouro da música brasileira, entre 1930 e 1945, e deverá chegar às livrarias em 2018. Já o terceiro tomo, no qual Lira tratará da segundo metade da década de 40 até o cenário contemporâneo, está prometido para 2019. O autor já concedeu os direitos de adaptação da obra para o cinema e televisão à produtora RT Features. Na entrevista a seguir, Lira fala sobre alguns pontos de "As Origens":

O samba começou marginalizado, mas se tornou o ritmo musical hegemônico do país. É possível traçar um paralelo entre ele e gêneros atuais que também não são bem-vistos por parte da nossa sociedade, como o funk?

Ao lidarmos com o processo histórico, é preciso sempre ter cuidado para não incorrermos no equívoco do anacronismo, ou seja, de analisar fatos, conceitos e ideias de uma época a partir das lentes de outra. Contudo, causa mesmo espanto a leitura dos jornais do início do século 20, que se referiam ao samba e aos sambistas quase com os mesmos adjetivos depreciativos lançados, hoje em dia, sobre os funkeiros e outros gêneros musicais surgidos e difundidos nas populações em estado de vulnerabilidade social. O samba era considerado, por certa ala da crítica, como algo de extremo mau gosto, um gênero musicalmente pobre, cenário de letras obscenas ou indigentes, enfim, um subproduto artístico, feito apenas para o consumo de uma ralé econômica e intelectual. Houve e há, evidentemente, muito de racismo e de elitismo, além de muita violência simbólica, tanto em um caso, quanto em outro. A partir disso, porém, é preciso analisar historicamente as semelhanças e assimetrias dos processos de incorporação, respectivamente, do samba e do funk às leis do mercado e da indústria do entretenimento. Só isso, sem dúvida, daria outro livro.

Qual era a sua relação com o samba antes de começar a trilogia? Essa relação vem mudando conforme o trabalho avança?

Desde sempre, sou alguém interessado – intelectual e afetivamente – pelas manifestações da cultura popular de um modo geral e, em particular, pela história da música popular brasileira. Minha relação com o samba deriva desse campo prévio de interesse, seja como ouvinte ou como pesquisador. Ao lado de meu trabalho de natureza mais comercial, digamos assim, desenvolvo atualmente uma pesquisa de caráter acadêmico, em que procuro estudar, numa perspectiva da semiótica da cultura, o impacto triplo que a então nascente indústria do entretenimento, o processo de urbanização do país e o projeto nacionalista da chamada Era Vargas exerceram sobre as reformatações do samba em meados do século 20.

Rio de Janeiro, 1915 – Acervo Iconographia.

"Uma História do Samba" acaba também por mostrar muito da sociedade brasileira no começo do século 20: marginalização, segregação, racismo, arbitrariedade da polícia… até mesmo o momento político era extremamente tumultuado. Muita coisa está ou continua bastante parecida, não?

Como diria Millôr Fernandes, o Brasil tem um grande passado pela frente. Escrever sobre a história do samba é também escrever sobre todo o nosso abominável histórico de violências, arbitrariedades, injustiças e preconceitos. O pensamento higienista e excludente permanece até hoje nos centros decisórios de poder. Contudo, por outro lado, é fascinante perceber como o samba, apesar das inúmeras tentativas dos que quiseram domesticá-lo e cooptá-lo, soube se manter como um vigoroso espaço de criação artística.

É possível precisar ou sondar em qual momento o samba deixa de ser apenas um gênero musical para se tornar um dos símbolos do Brasil?

O samba se torna o ritmo brasileiro hegemônico a partir dos anos de 1930, com a consolidação do mercado fonográfico, o apogeu do teatro de revista, o surgimento do rádio e o aparecimento do cinema. Em paralelo, o projeto nacionalista do Estado Novo ajudava a estabelecer o samba como símbolo de uma pretensa identidade nacional. É claro que, no livro, questiono o conceito de "identidade", uma construção ideológica que tenta homogeneizar, de modo autoritário, o que é necessariamente múltiplo e plural, apagando a beleza e anárquica das diferenças e dissonâncias.

Chorões na Festa da Penha em 1915 – Acervo Iconographia.

No livro você fala muito sobre o Carnaval, o surgimento das primeiras escolas de samba do Rio. Quão importante foi o carnaval para a consolidação do samba?

Antes da consolidação do moderno samba urbano, o Carnaval carioca tinha um perfil completamente diferente daquele que conhecemos hoje. Os primeiros ranchos carnavalescos, por exemplo, que então desfilavam na avenida Rio Branco, faziam seus cortejos ao som de músicas das mais variadas procedências. Em 1916, o maior sucesso da folia no Rio de Janeiro foram "Minha Caraboo", uma versão livre para um one-step norte-americano de Sam Marshall, a toada folclórica nordestina "Meu Boi Morreu" e uma valsa melodramática intitulada "Pierrô e Colombina". Antes disso, o rancho Ameno Resedá levara para a avenida duas árias de ópera adaptadas ao ritmo de marcha, incluindo trechos de "O Guarani", de Carlos Gomes, e "La Bohème", de Puccini. O samba só se tornará a trilha sonora por excelência do Carnaval carioca a partir da década de 1920 e, mais ainda, no início da década de 1930, quando se iniciam os desfiles das escolas de samba.

Paulo da Portela e Rainha do Samba – Acervo da Fundação Museu da Imagem e do Som do Estado do Rio de Janeiro – FMIS/RJ.

Ainda sobre o carnaval, já para o final do livro você escreve: "Carros alegóricos, a exemplo das grandes sociedades? Nem pensar. Não havia dinheiro, nem se dava importância para isso. O que iria contar ponto mesmo era a capacidade de mostrar samba no pé – e, também, no gogó. Venceria a comunidade que exibisse maior harmonia no desfile, cantasse com maior fervor os refrões e, ao final, convencesse os jurados de que reunia os partideiros mais inspirados". Tendo isso como a origem da disputa pelo carnaval, como você avalia os desfiles das escolas de samba hoje?

O desfile das escolas de samba passou por inúmeras transformações ao longo do tempo. Já nos primeiros desfiles, no início dos anos de 1930, pioneiros como Donga criticavam as então nascentes escolas de samba, argumentando que aquilo não seria o Carnaval "autêntico" dos ranchos e cordões de outrora. Poucas décadas depois, lá pelos anos de 1950, Ismael Silva dirá que o Carnaval havia se descaracterizado, e que bom mesmo, veja só, eram as escolas dos anos de 1930, renegadas por Donga. Lá pelos anos 1960 e 1970, muita gente irá dizer que o Carnaval dos anos de 1950 era bem melhor dos que os de então. E assim sucessivamente.

O saudosismo, a busca por uma suposta "autenticidade", tudo isso não faz qualquer sentido quando lidamos com a cultura popular. Querer que a cultura permaneça imóvel, intocada, livre das influências e contingências de seu tempo, é condená-la ao estatuto de simples "folclore". Essa constatação, óbvio, não impede que façamos críticas, entre outros aspectos, quanto à comercialização dos sambas enredos e ao gigantismo e verticalização que tomou conta dos carros alegóricos a partir do advento do sambódromo.

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Sobre o autor

Rodrigo Casarin é jornalista pós-graduado em Jornalismo Literário. Vive em São Paulo, em meio às estantes com as obras que já leu e às pilhas com os livros dos quais ainda não passou da página 5.

Sobre o blog

O blog Página Cinco fala de livros. Dos clássicos aos últimos sucessos comerciais, dos impressos aos e-books, das obras com letras miúdas, quase ilegíveis, aos balões das histórias em quadrinhos.