Psiquiatra de hospital-prisão escreve livro para mostrar que detentos são pessoas comuns, não seres inferiores
Rodrigo Casarin
19/04/2017 10h56
"Como é que as pessoas se acostumam à prisão e o que significa isso?" Foi essa pergunta que serviu de ponto de partida para que Natalia Timerman escrevesse "Desterros", seu livro de estreia recém-publicado pela Editora Elefante. A autora é médica psiquiatra, mestre em psicologia clínica pela USP, psicoterapeuta em formação e desde 2012 trabalha no Centro Hospitalar do Sistema Penitenciário de São Paulo, no Carandiru, na zona norte da capital paulista, o único lugar que atende os mais de 230 mil homens e mulheres encarcerados em todo o estado.
Na obra, Natalia alterna a narrativa entre a trajetória de Donamingo, angolana presa em São Paulo por tráfico internacional de drogas que, já na prisão, descobre estar grávida, com as histórias que ela mesma viveu e as contadas por outros presos. Com um olhar atento, solidário e empático, a autora mostra como aquelas pessoas que constantemente têm seus direitos, individualidade e a própria humanidade suprimidos também possuem virtudes, sonhos e fantasias – os crimes de diferentes gravidades e as malandragens para suportar a vida na cadeia também estão presentes no texto, vale deixar claro.
Impossível ler "Desterros" e não lembrar de livros como "Carandiru" e "Carcereiros", nos quais Drauzio Varella já expôs muito do cotidiano nas prisões. Se nos escritos de Natalia também nos deparamos com a superlotação, maus tratos e um ambiente dominado pelas facções criminosas, não pelo estado, ao retratar cada preso como um ser humano único, também permite que o leitor enxergue aquelas pessoas como cidadãs e reflita sobre as condições a que são submetidas.
"Meu esforço foi justamente esse: o de que os presos fossem retratados como gente, com história própria. Encarar os detentos como seres humanos é importante simplesmente porque é assim que os seres humanos devem ser tratados. Ter que se esforçar para isso dá a noção da aberração a que eles são expostos, mostra a grande lacuna de empatia que o livro tenta preencher", diz a autora em entrevista ao blog – que está na íntegra logo abaixo.
Segundo a psiquiatra, o sistema carcerário hoje passa longe de cumprir sua principal função: ser um meio para reintegrar o detento à sociedade. "Quem está preso quase inevitavelmente adentra o mundo do crime, em vez de sair dele. São muitos os relatos que escutei de gente que não tinha envolvimento com o crime organizado antes da prisão, ou de gente que começou a usar drogas a partir da experiência do encarceramento. O oposto do que se deveria esperar de uma suposta reabilitação".
Trabalhando no hospital-prisão, Natalia ainda pôde detectar uma irônica característica dos serviços púbicos: para quem sofre de determinadas doenças, é mais fácil receber atendimento na cadeia do que se estivesse em liberdade, precisando ser assistido pelo Sistema Único de Saúde. "Já escutei algumas vezes de pacientes paraplégicos, por exemplo, que, se estivessem fora, dificilmente receberiam tratamento de reabilitação motora como o que recebem no hospital".
Ao longo do livro, chama a atenção a maneira como você destina seu olhar aos presos: com cuidado, atenção, diferente da brutalização habitual que costumamos ver – e que você cita na própria obra. Qual a importância de continuarmos encarando os detentos como seres humanos, não como bichos ou pessoas inferiores?
Meu esforço foi justamente esse: o de que os presos fossem retratados como gente, com história própria. Foi isso o que primeiro me chamou a atenção quando comecei a trabalhar na prisão: eu estava diante de pessoas comuns. Encarar os detentos como seres humanos é importante simplesmente porque é assim que os seres humanos devem ser tratados. Ter que se esforçar para isso dá a noção da aberração a que eles são expostos, mostra a grande lacuna de empatia que o livro tenta preencher. Esta aberração, que é tratar alguém como bicho ou como se fosse inferior, não afeta só um lado, afeta ambos. Primeiro porque a brutalização é mútua; segundo, porque o que acontece com qualquer pessoa diz respeito à humanidade toda, ao menos enquanto possibilidade. E também porque aquelas pessoas sairão da prisão e devolverão à sociedade, de alguma forma, o tratamento recebido.
Ainda nesse sentido, a maneira que você lida com os presos é uma exceção dentro do sistema carcerário, não? Como você vê a maneira que os presos são normalmente tratados pelos profissionais que trabalham diretamente com eles? Por que você conseguiu "escapar" dessa brutalização?
Se a maneira como eu lido com os presos é uma exceção, isso acontece por conta da própria estrutura da prisão como instituição total, um conceito que eu abordo brevemente no livro (e que é o lugar onde se vive integralmente em companhia de pessoas que não se escolheu, com uma rotina determinada por um sistema de regras alheio à vontade de cada um). Os agentes penitenciários, por exemplo, também fazem parte disso, apesar de entrarem e saírem todos os dias; eles também são submetidos a essas regras por ter de fazer com que se cumpram. Na prisão, a individualidade deve ser aparada, os gestos devem ser contidos no trato com quem não está preso, e também entre os presos há um conjunto bastante complexo de regras implícitas a serem seguidas. Não sei se posso dizer que escapei dessa brutalização. Acho que não. Minha escuta mudou ao longo do tempo, minha disponibilidade e abertura nos atendimentos também. Talvez o livro seja justamente uma tentativa de barrar esse movimento de embrutecimento que acontece com todos que estão presos e ao seu redor.
Do modo que o sistema prisional está estruturado hoje no país, há chance de algum preso ser reabilitado para o convívio em sociedade?
Uma pessoa que está presa tem que, sob vários aspectos, deixar de ser si mesma. Ela precisa deixar sua família, seus amigos, seu mundo, seus pertences e até mesmo seus gestos do lado de fora dos muros. Nessas condições, é muito pouco provável, para não dizer impossível, que alguém se torne uma pessoa melhor ou se reconcilie com a própria história. O tempo na prisão não é frutífero: não é um tempo de estudo ou trabalho (a não ser como exceção, e ainda assim, muito pouco qualificado). Além disso, quem está preso quase inevitavelmente adentra o mundo do crime, em vez de sair dele. São muitos os relatos que escutei de gente que não tinha envolvimento com o crime organizado antes da prisão, ou de gente que começou a usar drogas a partir da experiência do encarceramento. O oposto do que se deveria esperar de uma suposta reabilitação.
Por outro lado, a impressão é que, para quem sofre de algumas doenças, é mais fácil receber atendimento estando na prisão do que se estivesse do lado de fora, precisando ser atendido pelo SUS. É isso mesmo?
Sim, é isso mesmo. Já escutei algumas vezes de pacientes paraplégicos, por exemplo, que, se estivessem fora, dificilmente estariam recebendo tratamento de reabilitação motora como o que recebem no hospital. Com outras doenças isso acontece também, mas nem sempre é assim. Não é raro eu presenciar a angústia de colegas diante da impossibilidade de realizar algum exame agendado há muito tempo por falta de escolta, ou diante de pacientes que saíram bem do hospital penitenciário e voltaram não muito tempo depois de novo psicóticos, ou com piora da tuberculose, ou da Aids, por terem parado o tratamento na unidade prisional de origem.
No livro você também se coloca contrária à atual política de combate às drogas. Qual o caminho ideal que você enxerga para esse assunto?
A atual política de combate às drogas, em nome desse combate, dessa guerra, deixa de ver muita coisa. Deixa de ver que, em toda a história da humanidade, não houve uma sociedade sequer sem indivíduos que se utilizassem de substâncias como forma de escapar da realidade. Ou seja: de antemão, parece ser uma guerra cara e perdida, que perde também a possibilidade de refletir sobre o significado da presença das drogas ao longo dos tempos e sobre a possibilidade de regular seus usos. A atual política de combate às drogas deixa de ver também que é uma guerra desigual, de cartas marcadas, em que só pobres e pretos sofrem as consequências; e que é uma engrenagem que se retroalimenta, pois o tráfico é sustentado pelo crime organizado e esse combate causa superlotação das prisões controladas pelo mesmo crime organizado, o que nos leva de novo à pergunta sobre a possibilidade de reabilitação em cadeias abarrotadas de gente. A atual política de combate deixa também de se perguntar, por fim, se o dano causado pela prisão ao indivíduo, à sua família e à sociedade, não é maior que o dano causado pela droga, ou ao menos se não deveria haver outras formas de se lidar com essa questão, como encarar alguns usos como problema de saúde e não de polícia.
Como o trabalho na prisão impacta no seu psicológico? Quais as diferenças que ele provocou na Natalia de antes desse trabalho e na Natalia de hoje?
Não posso dizer que trabalhar na prisão me impactou apenas negativamente, porque isso não seria verdade. Aprendo muito. Aprendo sobre doenças, aprendo sobre as pessoas, aprendo sobre mim. A prisão é feita para apartar pessoas da sociedade, mas o que acontece lá diz respeito a todo mundo. Muitas vezes é pesado, mas muitas vezes é um trabalho comum, porque nos acostumamos, assim como os presos se acostumam ao encarceramento. Isso me fez pensar, e foi o embrião do livro: como é que as pessoas se acostumam à prisão, e o que significa isso? No caso de quem está preso, significa, aí sim, a perda da possibilidade de liberdade; e no caso de quem trabalha lá, o embrutecimento. Mas sempre há novas pessoas, e novas histórias, e uma até milagrosa possibilidade de renovação, que no livro está personificada através de Donamingo, a angolana presa por tráfico que teve um filho estando presa. A história dela e de seu filho tem uma força incrível; não é fácil, mas não deixa de ser bela. Como a história de muita gente ali. Isso alimenta meu trabalho e me nutre também como pessoa – e foi também o motor do livro: uma beleza insistente. A Natalia de antes era mais ingênua, encantada. A Natalia de hoje também embruteceu, mas não perdeu completamente a possibilidade de se surpreender diante dessa insistência. A linha de costurar sentidos, os meus e os dos outros, está mais frágil, mas por isso mesmo mais verdadeira, porque os sentidos escapam sempre.
"A culpa por cada crime que quem está na prisão cometeu e não cometeu pertence também a quem não está preso.. E vice-versa. Por isso a necessidade de se contar a história dos homens que não somos nós. Para que tenham rosto e para que sua culpa pertença à humanidade. O que não significa redenção desta culpa". Poderia falar um pouco mais sobre isso?
O capítulo de onde vem esta citação tem uma epígrafe de Emmanuel Levinas que fala do rosto. O rosto é único, individual, nos define, mas é também extremamente frágil e exposto. Nossa riqueza e pobreza condensadas. E isso para cada um: o todo da humanidade compreendido por essas especificações singulares, significantes de quem se é. Os rostos, que pertencem, então, à humanidade. Assim como as histórias, retalhos de vida que formam o tecido da ação humana. Um dizendo respeito a outro, compondo essa trama de ser humano e que, só através dela, nos permite ser tocado pela vida e pela história de quem não sou eu. Se eu posso ser tocado pela narrativa de uma vida que não é minha, ela me diz respeito de alguma forma, me pertence enquanto possibilidade humana. E aí cabem também os crimes e as culpas. Mas para isso, as histórias precisam ser contadas, para que caibam na abrangência do que é ser homem. O que não significa que um indivíduo deixará de ser culpado pelo crime que cometeu, ou seja, não significa redenção dessa culpa.
Sobre o autor
Rodrigo Casarin é jornalista pós-graduado em Jornalismo Literário. Vive em São Paulo, em meio às estantes com as obras que já leu e às pilhas com os livros dos quais ainda não passou da página 5.
Sobre o blog
O blog Página Cinco fala de livros. Dos clássicos aos últimos sucessos comerciais, dos impressos aos e-books, das obras com letras miúdas, quase ilegíveis, aos balões das histórias em quadrinhos.