Conto sobre o lado sombrio da maternidade é destaque no bom livro de estreia de Giovana Madalosso
Rodrigo Casarin
18/03/2017 10h24
São diversas as qualidades que eu poderia citar de Giovana Madalosso em seu livro de estreia: a boa construção de personagens, a fluidez da linguagem, o aproveitamento de cenários díspares… Mas, como aponta a também escritora Carola Saavedra na orelha de "A Teta Racional", publicado pela Grua, o eixo principal da autora é "o lugar do feminino no mundo contemporâneo".
E dentre os 10 contos que compõem a obra, o que mais me chamou a atenção é justamente um que fala sobre uma das experiências intrínsecas às mulheres, seja na forma da própria vivência, seja na forma de insistentes e inconvenientes perguntas vindas dos outros: a maternidade. "XX + XY" é uma porrada na visão cor-de-rosa do que é ter e precisar cuidar de um bebê. Na história, uma jovem engravida de um desconhecido e depois precisa lidar praticamente sozinha com o rebento, tendo eventuais ajudas do estranho mas bem-intencionado pai.
Lembro de recentemente ter lido uma reportagem na qual mulheres apresentavam o lado sombrio de ser mãe: a insegurança, o cansaço, as mudanças no organismo, as dores e deformações no corpo, os machucados nos seios que os nenês causam ao mamar… Enfim, uma sorte de dificuldades que vão na contramão da imagem que a sociedade constrói da maternidade. E no conto Giovana transforma boa parte desses inconvenientes que um recém-nascido causa em uma ótima ficção. Veja um trecho:
"Nos primeiros meses de vida, o bebê depende da mãe para tudo. Não consegue buscar o próprio alimento. Não consegue virar de barriga para baixo, fica que nem uma barata deitada sobre o próprio casco, sacudindo pernas e braços num esforço débil. Não consegue se desvencilhar da morte, da ameaça constante de engasgar com o próprio vômito. A mãe tem que pôr o bebê para arrotar depois de cada mamada. E era isso que eu estava fazendo quando me deu uma baita vontade de ir ao banheiro. Eu já tinha voltado da maternidade. Estava em casa, sem ninguém para me ajudar. Fui com meu filho no colo até o banheiro, abri a calça e sentei na privada. Caguei. E, enquanto isso, ele regurgitou no meu colo. Um jato de leite que escorreu pelo meu braço e minha barriga. Quando tentei me limpar, ele se mexeu de um jeito brusco e abriu a ferida do meu mamilo que estava rachado. Comecei a chorar. E meu filho, sempre em simbiose comigo, chorou também. Nos acolhemos, nos grudamos um ao outro. Uma bola de fezes, vômito, sangue, lágrimas e muco se amando intensamente".
Não que "XX + XY" seja o único conto que mereça atenção no livro, há outros muito bons, como a problemática relação entre mãe e filha acentuada por uma viagem pelos Estados Unidos de "Suíte das Obras", as idas e vindas da amizade em "A Paraguaia" e a própria narrativa que dá nome ao volume (um nome que ainda me causa estranhamento, confesso). Na história de "A Teta Racional", Giovana retorna à maternidade para expor um conflito que a situação da personagem causa em seu ambiente de trabalho. A leitura de todos os textos vale a pena, ainda que alguns careçam de mais força. Que a carreira a elogiável estreia seja o começo de uma boa carreira na literatura.
Sobre o autor
Rodrigo Casarin é jornalista pós-graduado em Jornalismo Literário. Vive em São Paulo, em meio às estantes com as obras que já leu e às pilhas com os livros dos quais ainda não passou da página 5.
Sobre o blog
O blog Página Cinco fala de livros. Dos clássicos aos últimos sucessos comerciais, dos impressos aos e-books, das obras com letras miúdas, quase ilegíveis, aos balões das histórias em quadrinhos.