Novo livro de Neil Gaiman mostra deuses nórdicos tão sacanas quanto políticos brasileiros
Rodrigo Casarin
02/03/2017 14h39
"É tão difícil escolher um universo favorito de lendas e mitos quanto se decidir por um prato preferido (em algumas noites queremos comida tailandesa, em outras, sushi, e às vezes só conseguimos pensar na comida caseira e simples da nossa infância). Mas, se eu tivesse que escolher um, provavelmente seria o dos mitos nórdicos", escreve o inglês Neil Gaiman na apresentação de "Mitologia Nórdica", seu mais recente livro, que sai no Brasil agora em março pela Intrínseca.
Gaiman se tornou um dos escritores mais famosos e respeitados do mundo muito por conta da maneira que trata da mitologia em seus trabalhos. Em "Sandman", HQ que o projetou internacionalmente, mitos apareciam de maneira impactante e no romance "Deuses Americanos", um de seus livros mais festejados, já tinha explorado divindades nórdicas como personagens. Agora, o escritor imerge definitivamente no conjunto de histórias simbólicas criadas pelos escandinávicos e germânicos. Garantindo ter se empenhado para manter os mitos o mais próximo de suas formas originais, Gaiman reconta passagens como a do roubo do martelo de Thor e a das artimanhas de Odin para obter o hidromel da poesia para os deuses.
Antes de começar com as narrativas, no entanto, o autor lamenta que ao longo do tempo muitos dos mitos nórdicos tenham se perdido. Comparando com a mitologia grega e romana, diz que é como se apenas as histórias de Teseu e Hércules ainda estivessem vivas. "Há muitas deusas nórdicas. Sabemos seus nomes e alguns de seus atributos e poderes, mas suas histórias, seus mitos e rituais, não sobrevivem ao tempo. Queria poder recontar as histórias de Eir, a médica dos deuses; de Lofn, a consoladora, a deusa nórdica do casamento; ou de Sjofn, uma deusa do amor. Isso sem falar em Vor, a deusa da sabedoria. Até consigo imaginar algumas delas, mas não sou capaz de desvelar seus mitos".
Personagens que nos são familiares
A caracterização dos deuses, os protagonistas das narrativas, é uma das principais virtudes do livro. É fácil notar como Thor, por exemplo, é um ser amigável e carismático, mas também um tanto tapado – isso para não dizer que é burro mesmo. Por sua vez, Loki, meu personagem favorito, é tratado por Gaiman com uma série de adjetivos:
"Loki é muito bonito. Ele é sensato, convincente, simpático e, de longe, o mais perspicaz, e astuto de todos os habitantes de Asgard [a morada dos deuses]. É uma pena que haja tamanha escuridão em seu âmago: tanta raiva, tanta inveja, tanta cobiça. Sua verdadeira arma é a mente. Ele é mais inteligente, sutil e traiçoeiro do que qualquer deus ou gigante". Como bem diz Gaiman, Loki bebe demais, é falastrão e não consegue domar sua língua, suas ações e seus pensamentos. Ele "torna o mundo mais interessante, mas menos seguro. É o pai Pai dos Monstros, o autor de infortúnios, o deus da trapaça".
Também nos deparamos com figuras menos conhecidas, como Ask e Embla, que equivalem a Adão e Eva da mitologia cristã, os pais de toda a humanidade, e Kvásir, o mais sábio dos deuses, que sabia aliar cabeça e coração para das respostas sempre sensatas às perguntas que lhe faziam. Mas, voltando aos mais famosos, temos ainda Odin, o ardiloso e sorrateiro pai dos deuses, responsável por soprar a vida dos homens, que abriu mão de um de seus olhos em troca de sabedoria e se sacrificou em troca do conhecimento da magia das runas.
Em uma das histórias, Odin manifesta uma curiosa semelhança com uma polêmica figura contemporânea: quando gigantes e trolls ameaçam atacar a morada dos deuses, propõe que seja construído um muro alto e forte o bastante para conter os invasores de suas terras sagradas. "Construir um muro desses, tão alto e espesso, vai levar muitos anos", ponderou Loki. "Mesmo assim precisamos de um muro", enfatizou Odin. Tenho certeza que Donald Trump sorriria ao ler o trecho.
Por falar em mandatários, se a principal característica de um mito é se manter simbolicamente atual com a passagem do tempo, o conjunto da mitologia nórdica apresentado por Gaiman traz surpreendentes semelhanças com boa parte da cena política nacional. São "mitos de um povo que não confiava plenamente em seus deuses, ou nem sequer gostava deles", apesar de haver respeito e temor, constata o autor. Ao longo das histórias, é extremamente comum observarmos os deuses se corrompendo, chantageando, trapaceando, tramando e sacaneando os outros. Ninguém ali parece mesmo ser digno de plena confiança, como bem sabiam os cidadãos regidos por essas divindades.
Sobre o autor
Rodrigo Casarin é jornalista pós-graduado em Jornalismo Literário. Vive em São Paulo, em meio às estantes com as obras que já leu e às pilhas com os livros dos quais ainda não passou da página 5.
Sobre o blog
O blog Página Cinco fala de livros. Dos clássicos aos últimos sucessos comerciais, dos impressos aos e-books, das obras com letras miúdas, quase ilegíveis, aos balões das histórias em quadrinhos.