Para pesquisador, Dois Irmãos é um drama bíblico de autoconhecimento que faz referência a mitos indígenas
Rodrigo Casarin
12/01/2017 16h02
Ódio e rivalidade entre irmãos. O tema da história de "Dois Irmãos", romance de Milton Hatoum que foi transformado em minissérie pela Globo, pode ser considerado clássico. Ele aparece, por exemplo, na "Bíblia" e em mitologias de povos antigos. É isso que aponta o pesquisador Lucius de Mello.
Lucius é o autor de "Dois Irmãos e seus Precursores: O Mito e a Bíblia na Obra de Milton Hatoum", pesquisa que realizou no Departamento de Estudos Orientais da USP para a obtenção de seu mestrado na área de língua hebraica, literatura e cultura judaicas e foi publicada em 2014 na "Coleção Judaica", lançada pela editora Humanitas. A partir do conflito entre Omar e Yaqub, os irmãos da narrativa de Hatoum, o pesquisador mostra como o livro dialoga com episódios bíblicos presentes no "Gênesis", em passagens envolvendo Caim e Abel e Esaú e Jacó, por exemplo, e com o mito dos gêmeos inimigos que faz parte da mitologia dos povos tupinambás, indígenas que habitavam parte da costa brasileira.
"'Dois Irmãos' não deixa de ser um drama bíblico de autoconhecimento", afirma Lucius. "Assim como Rebeca, mãe dos gêmeos bíblicos Esaú e Jacó, a personagem Zana de Hatoum também é mãe de gêmeos que vivem em conflito e as duas mães amam mais um filho do que o outro. Nesse caso, Zana ama mais a Omar do que Yaqub. Rebeca ama mais Jacó do que Esaú".
Em sua análise o pesquisador constatou que os irmãos de Hatoum em diversos momentos se aproximam e se distanciam das histórias de Jacó e Esaú. "Nas primeiras páginas do romance, Yaqub logo é comparado a Esaú, visto que, assim como o personagem bíblico, é o filho predileto do pai e o menos amado pela mãe. Só que, ao contrário, de Esaú, Yaqub é mais estudioso e ligado aos livros do que Omar. Neste caso, Yaqub também pode ser comparado a Jacó. Ele é meio Esaú e meio Jacó; assim como Omar, gêmeo dileto da mãe Zana, mas muito mais ligado à natureza, à floresta, à vida fora da 'tenda', como Esaú". Já olhando para Caim e Abel, Lucius diz que nas duas narrativas a inveja é o sentimento que leva à violência. "No romance, a inveja do amor da jovem Lívia; na narrativa bíblica, a inveja do amor de Deus".
Estudando a mitologia Tupinambá, o pesquisador também encontrou um mito no qual gêmeos em conflito fundam o mundo a partir da violência. "A rivalidade entre Tamendonare e Aricoute metaforiza as forças e as pulsões do próprio cosmos, energias em movimento a girar a Terra e a movimentar as águas e as nuvens. Os gêmeos tupinambás também eram rivais, divididos por seus diferentes temperamentos. Aricoute, intrépido e belicoso, desprezava seu mano Tamendonare, a quem reputava poltrão. Esaú e Jacó, assim como Omar e Yaqub, também eram gêmeos inimigos, divididos por temperamentos e personalidades diferentes".
No entanto, Lucius ressalta que os personagens das histórias não devem ser vistos como cópias uns dos outros. "Filtrando-se as diferenças simbólicas envolvidas, quando analisados, os gêmeos da 'Bíblia', os da mitologia ameríndia e os do romance de Hatoum se entrelaçam. Um está dentro do outro e se revezam nos papéis descritos em cada narrativa".
Sobre o autor
Rodrigo Casarin é jornalista pós-graduado em Jornalismo Literário. Vive em São Paulo, em meio às estantes com as obras que já leu e às pilhas com os livros dos quais ainda não passou da página 5.
Sobre o blog
O blog Página Cinco fala de livros. Dos clássicos aos últimos sucessos comerciais, dos impressos aos e-books, das obras com letras miúdas, quase ilegíveis, aos balões das histórias em quadrinhos.