Nélida Piñon: “Paira uma suspeita em relação à obra literária de mulheres”
Rodrigo Casarin
23/11/2016 11h34
Quando jovem, sempre que Nélida Piñon precisava voltar para casa se lembrava de Adoniran Barbosa e o seu "Trem das Onze". Dizia morar longe, não podia correr o risco de perder o transporte. "A música me marcou muito porque eu a utilizava para me defender dos amores. Era a filha única que precisava voltar", recorda. No entanto, somente há alguns anos que a escritora foi descobrir de fato a genialidade de Adoniran. "Fiquei encantada com a capacidade dele captar o cotidiano e traduzir em uma poesia descarnada, triste, conformada. Impressiona. Ele faz a critica por meio da conformidade. Suas frases são muito modestas, mas tem uma grande força dramática", conta Nélida em uma entrevista por telefone.
Um dos principais nomes da literatura brasileira contemporânea, Nélida, hoje com 79 anos, estreou em 1961 com "Guia-mapa de Gabriel Arcanjo". Dentre seus grandes trabalhos estão os romances "A República dos Sonhos", sobre imigração, e "Vozes do Deserto", a respeito de narrativas árabes, que lhe rendeu o Jabuti de 2005. Entrou para a Academia Brasileira de Letras em 1989 e presidiu a instituição entre 1996 e 1997, sendo a primeira mulher a ocupar o cargo. No texto já citado, ela inclusive fala sobre como continua ativa nas reuniões da ABL:
"Não posso renunciar às experiências que as mulheres em priscas eras depositaram ao pé do lume. E nem deixar de ir à Academia Brasileira de Letras duas vezes por semana. Ou abdicar do hábito de deter-me diante da estátua de Machado de Assis, posta no pátio que dá acesso ao Petit Trianon, e lhe dizer palavras que me ocorram naquele dia. Sem ostentar, porém, qualquer intimidade. Trato o gênio nosso com máxima consideração, o que implica usar o tratamento senhor. Nem com o pontífice, no Vaticano, com pompas e auras, tenho tais cuidados. Mas está certo que eu aja assim, quem no Brasil supera Machado de Assis?", registra.
Aliás, o nome e as reverências ao autor de "Memórias Póstumas de Brás Cubas" é algo recorrente em "Filhos da América". "Acho que ele é um milagre brasileiro. Um escritor magnífico, extraordinário, que contrariou as possibilidades do seu tempo. Não era para ser como ele foi naquele Brasil pequeno, pobre e marginalizado. Ele não se tornou um escritor tribal, mas canônico, que pode ser comparado a Flaubert, Stendhal e todos os grandes romancistas do século 19", argumenta a autora durante nossa conversa.
No livro Nélida também fala da Galícia, região da Espanha a qual é muito ligada por conta das raízes familiares. O reconhecimento internacional da escritora impressiona, diga-se. É catedrática da Universidade de Miami desde 1990 e passou como escritora-visitante por Harvard, Columbia, Johns Hopkins e Georgetown. É doutora honoris causa das universidades Poitiers, Santiago de Compostela, Rutgers, Florida Atlantic, Montreal e Unam. Já ganhou prêmios em países como México, Colômbia, Chile e Espanha, dentre eles o prestigiado Príncipe das Astúrias pelo conjunto de sua obra. Em 2012 foi nomeada Embajadora Iberoamericana de la Cultura e, em 2014, entrou para a Real Academia Galega. A sensação que dá é que seu nome é mais forte no exterior do que no próprio Brasil, algo que ela mesmo diz ser possível.
"Talvez seja verdade, mas isso tem muito a ver não só com a minha pessoa. O reconhecimento feminino é mais demorado. Paira uma suspeita em relação à obra literária de mulheres, que sempre estiveram em segundo plano", diz. Na sequência, também fala sobre o fortalecimento de causas relacionadas às moças. "Surgiu uma geração de mulheres ativas, inteligentes, corajosas, que se deram conta que as conquistas das últimas décadas não foram suficientes. Em um momento achei a mulher jovem distraída, desatenta, parecia que já tinha conquistado tudo. Se o mundo é dominado pelos homens, por que a literatura não será? Só posso dar as boas vindas a esse movimento inteligente, sensível e corajoso".
Nobel para Dylan
Voltando à música, se Nélida daria anéis e brincos para escrever uma frase de Adoniran, o que ela pensa do Nobel de Literatura dedicado a Bob Dylan, um compositor? "Não tem sentido pra mim. Se queriam premiar os EUA, que fosse o Philip Roth, que tem uma obra completa, gigantesca. Foi uma leviandade. Há um predomínio da música sobre a letra. É uma literatura, sem dúvida, mas a letra submete-se à música. O mundo romanesco, poético, tem uma soberania absoluta, é o predomínio total e rigoroso da palavra. É a palavra solitária descrevendo o mundo com extraordinária dimensão. Não vejo razão para ele ganhar o Nobel".
O nome da própria Nélida já foi ventilado como um possível vencedora do prêmio, aliás, mas ela acredita que a chance de algum brasileiro receber a honraria ainda é muito remota. "O Brasil é um país periférico. Temos escritores que acham que estão conquistando o mundo com literatura, mas é algo difuso, não temos um lugar predominante no mundo da cultura internacional. Até pouco tempo atrás nenhum europeu ou norte-americano de estatura conhecia o Machado de Assis, então estamos marginalizados", opina. "Há um grande esquecimento em relação ao Brasil", conclui.
Azar de quem ainda não conhece Machado ou jamais conhecerá Adoniran, pois.
Sobre o autor
Rodrigo Casarin é jornalista pós-graduado em Jornalismo Literário. Vive em São Paulo, em meio às estantes com as obras que já leu e às pilhas com os livros dos quais ainda não passou da página 5.
Sobre o blog
O blog Página Cinco fala de livros. Dos clássicos aos últimos sucessos comerciais, dos impressos aos e-books, das obras com letras miúdas, quase ilegíveis, aos balões das histórias em quadrinhos.