"Vou mudando meu modo de ver a relação entre o corpo e as nossas noções de estética. O 'belo' há de ser sempre uma avaliação pessoal, mas não se pode negar o modo como os cânones são construídos em cada cultura – e na nossa de forma mais preocupante, já que se baseiam em padrões de consumo e motivações comerciais. Evidente que ainda tenho critérios para avaliar a beleza dos corpos, mas a própria beleza não é mais o aspecto mais determinante nesse olhar. Há tanta coisa mais…".

É o que diz a cartunista Laerte Coutinho, que recentemente lançou pela Barricada, selo de quadrinhos da Boitempo, a coletânea "Modelo Vivo", organizada por Toninho Mendes, no qual reúne alguns de seus trabalhos. Dentre eles, há quadrinhos pouco conhecidos publicados entre as décadas de 80 e 90 em revistas como Chiclete com Banana, Piratas do Tietê e Geraldão, um inédito e uma série de desenhos baseados em modelos humanos, produzidos pela artista durante um curso que organizou junto com Rafael Coutinho, seu filho e também quadrinista. Nestas composições, Laerte se afasta dos famosos personagens e do traço humorístico para, com uma linha que se assemelha a esboços, aproximar-se de desenhos mais realistas.

"Incluir esses desenhos foi uma maneira de trazer um fato novo a um livro-coletânea, embora também inclua uma história inédita e algumas relativamente pouco conhecidas. De todo modo, gostei de registrar esse meu outro desenho. Pra mim, desenhar o corpo é uma forma de desintoxicar o traço", explica a quadrinista.

No prefácio de "Modelo Vivo" há uma declaração de Laerte que pode causar preocupação aos fãs: "Talvez seja só coisa minha – mas tenho tido cada vez menos prazer e mais dificuldade com o desenho", escreve em um texto no qual fala sobre inspirações e desafios – ou a falta deles. Na entrevista, no entanto, a quadrinista contorna o tema. "Quem poderia temer [um bloqueio definitivo] seria eu mesma, já que não sei fazer outra coisa…Mas meu trabalho continua, seja como for. As buscas vão se modificando".

Voltando à questão do corpo, como é amplamente conhecido, Laerte passou por um processo de transição sexual nos últimos anos, algo que, incompreensivelmente, incomoda e desperta a raiva e o ódio de muita gente. "Acontece e é perturbador, algumas vezes me abala mais do que eu esperava. Lido com isso conforme o caso…algumas vezes dá pra extrair do episódio algo para refletir. Em outras basta um bloqueio, em outras pode ser necessário apelar para a justiça", diz a artista, que recentemente também posou para Rafael Roncato, autor das fotos que acompanham esta matéria.