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HQ conta como revolta estudantil descambou em guerra com milhares de mortos

Rodrigo Casarin

28/10/2016 13h42

Mais de mil escolas e universidades pelo país estão ocupadas por estudantes que se manifestam contra a reforma do Ensino Médio e a PEC 241. A leitura de "Sendero Luminoso – História de Uma Guerra Suja", graphic novel dos peruanos Alfredo Villar, Jesús Cossío e Luis Rossel, veio muito bem a calhar neste momento. A obra narra a guerra que aconteceu nos campos do Peru entre as décadas de 80 e 90, deixando mais de 70 mil mortos, além de outros milhares de presos, torturados e traumatizados pelos conflitos entre as forças armadas do país e o Sendero Luminoso. O grupo surgiu justamente de uma revolta de estudantes violentamente reprimida pela polícia no final dos anos 60.

Em 1969, o governo que havia assumido o Peru no ano anterior após um golpe militar baixou um decreto no qual dizia que estudantes reprovados em qualquer matéria teriam que começar a pagar pelos seus estudos. Todo o país se manifestou contra a medida e os protestos mais veementes, bem como reprimidos com mais força, aconteceram em Ayacucho, região pobre onde está localizada a Universidade Nacional de San Cristóbal de Huamanga, que se transformou em um centro de excelência na década de 60 e em um lugar no qual discussões sobre os problemas sociais do país frequentemente eram travadas. "Ou seja, na definição das Forças Armadas, do clero e da direita em geral, um 'foco de subversão'", escreve Rogério de Campos, editor da Veneta, casa que publicou a obra por aqui, no prefácio da edição brasileira de "Sendero Luminoso".

Por conta desse aspecto político, o governo já havia tentado minar a universidade alguns anos antes, mas fracassou porque estudantes, professores e a comunidade local se manifestaram em defesa da instituição. Campos cogita que isso pode ter influenciado para que secundaristas de Ayacucho e arredores radicalizassem na luta contra o decreto de 1969. Uma série de eventos descambou na criação da Frente Única dos Estudantes Secundaristas de Ayacucho, que, tão logo nasceu, passou a ser violentamente reprimida pela polícia, ação defendida por muitos. "Os secundaristas tinham contra eles a grande imprensa, a direção do Partido Comunista, as Forças Armadas, os grandes proprietários de terras e também a Igreja Católica, que chega a autorizar o Exército a colocar metralhadoras nas torres das igrejas", escreve Campos.

Após o exército massacrar estudantes e camponeses dentro de um mercado, a revolta toma conta da região. Os moradores se rebelam contra a polícia e os militares, o que descamba em uma série de prisões e no assassinato de quatro cidadãos pelas pelos oficiais – números oficiais, pois a população garante que muitos outros também foram mortos. As manifestações crescem, bem como a violência da polícia e o número de pessoas assassinadas pelo braço armado do governo. Alguns dias depois, enfim, o ditador revoga o decreto que causara tudo isso.

Estupros e mortes

No entanto, segundo os autores de "Sendero Luminoso", aquele momento no final da década de 60 foi decisivo para que os conflitos nas décadas de 80 e 90 ocorressem. Com os moradores de Ayacucho indignados com a barbárie cometida pelas forças do governo, Abimael Guzmán, dirigente comunista e professor de filosofia na Universidade de San Cristóbal, encontrou um público que abraçou o seu discurso revolucionário. Fundou, então, seu próprio partido, que cresceu de forma clandestina durante a década de 70, fortaleceu suas bases entre os camponeses e passou a ser chamado de Sendero Luminoso. Um de seus nortes era claro: defendia a chegada ao poder por meio de uma sangrenta revolução, uma resposta àquilo que os militares já tinham feito com a própria população.

Daí em diante, o que temos são os lamentáveis fatos que encontramos em qualquer história de guerra: assassinatos, tortura, estupros, ameaças àqueles que gostariam de não tomar partido algum, violações constantes dos direitos humanos… Enfim, a barbárie cometida pelos dois lados do conflito, revolucionários e reacionários, que se transformam em bestas ensandecidas. São muitas as passagens da graphic novel que reviram o estômago. Homens são forçados a matar cachorros com facas e a comer suas tripas para que "percam o nojo de sangue", mulheres são violadas e veem seus pequenos filhos sendo enforcados com barbantes, militares invadem festas para estuprar as moças e depois aniquilar todos os ali presentes…

Chama atenção também a indiferença de boa parte da imprensa, das lideranças políticas e dos mais abastados àquela carnificina que acontecia nas regiões mais pobres do país. Quando um raro grupo de jornalistas é assassinado ao tentar investigar o conflito, por exemplo, o governo destaca uma comissão capitaneada por um outro jornalista, Mario Vargas Llosa – sim, aquele que ganharia o Nobel de Literatura em 2010 –, para investigar o ocorrido. No entanto, o "relatório Vargas Llosa", como é chamado o memorando no qual a comissão conta o que descobriu sobre o massacre, beira o ridículo, apresentando apenas suposições rasas e inconclusivas e deixando (oportunamente?) de lado pistas que certamente levariam aos culpados pelo ato.

Abimael Guzmán

Hoje, anos depois, a guerra que dominou o Peru permanece como um tabu por lá. A Comissão da Verdade estabelecida para averiguar o que aconteceu durante o período estima que haja mais de 4000 cemitérios clandestinos e valas comuns ainda fechadas. Abimael Guzmán e diversos outros líderes dos rebeldes foram presos – muitos deles terminaram assassinados na cadeia -, no entanto, o mesmo rigor jamais foi aplicado aos militares que cometeram crimes exatamente iguais.

No momento de convulsão pelo qual o Brasil passa, importante olharmos para excelentes trabalhos artísticos como essa HQ para termos permanentemente na cabeça quais são os caminhos que sequer devem ser cogitados. Ainda mais em um país cuja polícia – que representa o estado, vale lembrar – costuma violar leis e humilhar, agredir, cegar e matar cidadãos com uma frequência diária (no ano passado, assassinaram nove pessoas por dia). Só para falar das próprias manifestações dos estudantes, ontem mesmo já surgiram notícias de abusos em Palmas, Piracicaba e Chapecó. Uma hora parte do povo poderá tentar tomar medidas drásticas contra isso, aí teremos a repetição de uma história já escrita.

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Sobre o autor

Rodrigo Casarin é jornalista pós-graduado em Jornalismo Literário. Vive em São Paulo, em meio às estantes com as obras que já leu e às pilhas com os livros dos quais ainda não passou da página 5.

Sobre o blog

O blog Página Cinco fala de livros. Dos clássicos aos últimos sucessos comerciais, dos impressos aos e-books, das obras com letras miúdas, quase ilegíveis, aos balões das histórias em quadrinhos.