Drummond, Shakespeare, Bíblia: as influências literárias de Renato Russo
Rodrigo Casarin
11/10/2016 11h02
Vinte anos após sua morte, muita gente continua considerando Renato Russo mais do que o letrista da Legião Urbana, mas um poeta. Ele, no entanto, sempre recusou o rótulo (mais tarde viriam a publicar livros com escritos seus, no entanto, como o recém-lançado "The 42nd ST. Band", cuja resenha está aqui). Afirmava que em sua geração havia compositores mais competentes, como Cazuza e Cadão Volpato, e, certa vez, declarou que apenas duas de suas criações de sustentariam sem a música: "Acrilic on Canvas" e "Andrea Doria".
Independente do rótulo, fato é que Renato foi um ávido leitor. Não perdia oportunidade de exaltar Carlos Drummond de Andrade e Fernando Pessoa. Também era comum vê-lo citar nomes como Thomas Mann, Balzac, Dostoiévski e Shakespeare. E suas leituras não se "limitavam" aos clássicos da literatura. Encarava desde grandes nomes da filosofia, como Jean-Paul Sartre, até autores populares, como Stephen King, sem deixar de lado os textos tido como sagrados por alguns, tais quais a "Bíblia" e "Tao Te-King".
Como não poderia deixar de ser, tudo isso se refletiu e influenciou as letras que escreveu. Eis aqui uma lista com 10 dessas referências literárias (sim, há muito mais do que isso nas músicas da Legião):
"Eduardo e Mônica": a história fala do amor entre um garoto que ainda jogava futebol de botão com seu avô quando conheceu a namorada, uma moça que fazia medicina, falava alemão e gostava dos poemas de Manuel Bandeira, um dos grandes nomes da poesia nacional, e de Arthur Rimbaud, grande nome da poesia francesa no século 19.
"A Montanha Mágica": o título é uma referência à obra homônima do alemão Thomas Mann, Nobel de Literatura de 1929. Tanto a música quanto o livro apresentam personagens em busca de liberdades individuais e amadurecimento.
"Monte Castelo": talvez a música na qual as referências literárias usadas por Renato sejam mais conhecidas. Há versos da "Bíblia" ("Ainda que eu falasse a língua dos homens, e falasse a língua dos anjos, sem amor eu nada seria") e de Camões ("Amor é fogo que arde sem se ver…").
"Daniel na Cova dos Leões": música na qual Renato fala abertamente sobre homossexualidade ("Teu corpo é meu espelho e em ti navego"), o título que faz outra referência à "Bíblia", à passagem na qual Daniel é mandado pelo rei Dario a uma jaula cheia de leões, mas consegue escapar ileso de lá após pedir pela intervenção divina.
"Há Tempos": o verso "Muitos temores nascem do cansaço e da solidão" foi retirado de "Regras Para a Felicidade", poema com tom de autoajuda do norte-americano Max Ehrmann.
"A tempestade": o último álbum lançado em vida por Renato, em 1996, quando já estava com a saúde bastante debilitada, recebeu o nome de uma das peças mais famosas de William Shakespeare. Não bastasse, a epígrafe do disco ainda trazia uma citação retirada do livro "Serafim Ponte Grande", de Oswald de Andrade: "O Brasil é uma/ república federativa/ cheia de árvores/ e gente dizendo adeus".
"Faroeste Caboclo": o final de uma das músicas mais famosas da Legião também faz alusão a Shakespeare. O desfecho com Maria Lúcia e João de Santo Cristo mortos "eterniza o amor e lembra a cena trágica da morte de Romeu e de Julieta", apontam Angélica Castilho e Erica Schlude, mestres em Literatura Brasileira e autoras de "Depois do Fim", no qual analisam as letras escritas por Renato
"Índios": elas também indicam que um dos maiores hits do álbum "Dois" dialoga com ideias do filósofo francês Jean-Jacques Rousseau (uma das referências para que Renato criasse seu nome artístico): "Em 'Índios', o olhar crítico está perfeitamente alinhado com a poesia: 'Quem me dera ao menos uma vez,/ Ter de volta todo ouro que entreguei/ A quem conseguiu me convencer/ Que era prova de amizade/ Se alguém levasse embora até o que eu não tinha'. O desejo de retorno a um tempo no qual a ingenuidade é valiosa manifesta-se constantemente. Essa letra remete ao conceito de 'bom selvagem' […]. Segundo Rousseau, todo homem nasce livre e deveria se sentir assim".
"Petróleo do Futuro": segundo Angelica e Erica, nesta música do primeiro álbum da banda é possível perceber referências a Drummond em trechos como "Sou brasileiro errado/ Vivendo em separado/ Contando os vencidos/ De todos os lados". "A consciência da condição individual e social caracteriza eu eu-lírico como marginal, o 'gauche' que está à margem e de lá observa tudo; é o mesmo posicionamento do eu-lírico do 'Poema de Sete Faces', do Carlos Drummond de Andrade: 'Quando nasci, um anjo torto/ desses que vivem na sombra/ disse: Vai, Carlos! ser gauche na vida'", escrevem.
"As Flores do Mal": para finalizar a lista, mais uma referência a um poeta francês do século 19. Tal qual a música presente no álbum póstumo "Uma Outra Estação", um dos livros mais importantes de Charles Baudelaire também se chama "As Flores do Mal".
Sobre o autor
Rodrigo Casarin é jornalista pós-graduado em Jornalismo Literário. Vive em São Paulo, em meio às estantes com as obras que já leu e às pilhas com os livros dos quais ainda não passou da página 5.
Sobre o blog
O blog Página Cinco fala de livros. Dos clássicos aos últimos sucessos comerciais, dos impressos aos e-books, das obras com letras miúdas, quase ilegíveis, aos balões das histórias em quadrinhos.