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27 anos com HIV, tumores, AVCs: “Highlander" brasileiro lança autobiografia

Rodrigo Casarin

13/09/2016 10h41

Foto: Murillo Constantino

"Ter HIV era a pior coisa que poderia ocorrer com uma pessoa na década de oitenta". Quem diz isso é Beto Volpe, hoje com 55 anos. Em 1989 ele descobriu ser portador do vírus que, na época, significava uma condenação de morte tanto social quanto física. O conhecimento sobre a doença era mínimo, o preconceito, enorme, e só restava aos infectados a fé (se houvesse alguma crença) e o apoio da família (isso se ela também não virasse a cara). Quando Cazuza morreu, em julho de 1990, um símbolo do país que finou em decorrência da AIDS, muitos perderam definitivamente a esperança e passaram a apostar nas drogas para aliviar o sofrimento, para se destruir da maneira mais breve possível, como o próprio Volpe.

O momento da morte sentenciada, no entanto, não chegava. Passado o impacto de contar aos familiares que possuía a doença – "a dolorida cumplicidade de meu irmão, o silêncio de meu pai e uma furtiva lágrima escorrendo pelo rosto de minha mãe me doem até hoje", lembra –, outros momentos negativamente marcantes vieram. Após sete anos do diagnóstico, Volpe teve infecções oportunistas, pneumonia, três AVCs (Acidente Vascular Cerebral) que o deixaram com sequelas no lado direito do corpo e uma candidíase (o famoso "sapinho") que o fez perder trinta quilos e ouvir de seu médico que estava em estado terminal.

O médico errou, claro. Em 2000, no entanto, novo diagnóstico negativo: osteoporose e osteonecrose por meio da primeira das quatro fraturas que já sofreu no fêmur – possui hoje duas próteses de quadril. Em 2003, o primeiro tumor que, percebido tardiamente, já se espalhava pela medula, pescoço, pulmão, fígado, baço, retroperitônio e virilha. Travou uma batalha contra a doença até 2009, quando conseguiu se livrar de outro tumor que aparecera no reto. Não é à toa que Volpe passou a ser chamado por Marcos Caseiro, seu médico, de "Highlander", em referência ao personagem imortal interpretado por Christopher Lambert nos cinemas. Seria um Highlander brasileiro.

Para ajudar outros portadores da doença que Volpe criou a ONG Hipupiara Integração e Vida – Grupo HIV. Agora, para demonstrar como é possível conviver com a AIDS sem que a existência perca o brilho, está lançando sua autobiografia: "Morte e Vida Posithiva", que sai pela editora Realejo – e tem prefácio do próprio Caseiro.

"Em 2002 houve um concurso público selecionando catorze textos de superação com relação à AIDS, que comporiam um livro chamado 'Histórias de Coragem', sendo que um deles foi o meu. Ao realizar uma tarde de autógrafos em Santos, um casal se aproximou e pediu que eu autografasse o exemplar que eles tinham trazido de São Paulo: 'Beto, você não sabe o quanto somos gratos a você, nosso filho tem HIV e há dois meses praticamente não saía da cama, até ler sua história. Assim que ele terminou de lê-la, ele se levantou e decidiu lutar pela vida'. Nesse momento eu decidi colocar minhas experiências no papel, sem saber que as mais desafiadoras ainda estavam por vir", lembra Volpe.

Claro que encontrou um grande desafio ao repassar suas memórias, como precisar revisitar o momento em que "perdeu" seu irmão caçula para a bipolaridade. Mas também teve seus prazeres. "Não faltaram episódios onde eu ria sozinho e outros em que sentia um leonino orgulho de mim mesmo".

Bom humor de quem conheceu a morte pessoalmente

O próprio Volpe que lembra de um desses momentos engraçados que viveu. "Estava em uma repleta sala de quimioterapia da Santa Casa de Santos para minha primeira sessão, onde ninguém se comunicava com ninguém e as pessoas se deixavam levar pelos pesadelos que o câncer traz. De repente a enfermeira chega com um monte de tubos em uma bandeja e me pergunta: 'Senhor Luiz [seu nome completo é Luiz Alberto Simão Volpe], quando é que o senhor vai cortar os cabelos?' Ela se referia a meu lindo corte fio reto, cultivado por alguns anos, ao que respondi: 'Ué, precisa? Falaram pra mim que cai tudo sozinho…', ao que o rapaz a meu lado estourou em uma sonora risada. Após o pedido de desculpas da enfermeira eu puxei papo com esse meu vizinho e para contar uma piada não custou nada. Através do humor, outras pessoas riam e passaram a interagir de alguma forma, até que no final da tarde eu estava contando piadas horríveis de câncer, sempre seguidas de libertadoras gargalhadas", lembra.

Mas na sequência ele foi sutilmente repreendido. "Nisso, outra enfermeira chega por trás de mim e sussurra: 'Seu Luiz, eu acho que o senhor não deveria contar piadas assim para esse tipo de gente…', ao que retruquei: 'Querida, esse tipo de gente é igual a você, nada lhe livra de estar do lado de cá a qualquer momento. E lembre que no início da tarde havia uma doença oprimindo todo mundo, agora todos estão tirando sarro dela'. Aliás, eu não consigo dissociar o humor de nada do que faço e ele está presente em toda a narrativa usada no livro, o humor muda tudo".

Esse modo de encarar os problemas talvez seja uma consequência das vezes que sobreviveu à morte iminente. "Uma vez que você conhece a morte pessoalmente, a vida passa a ser mais leve, não é qualquer problema que lhe abate e mesmo a própria morte passa a ser sua melhor amiga. Se não fosse ela fungando em meu cangote e me obrigando a viver plenamente, eu não teria tomado atitudes que me tornaram mais humano, no bom sentido da palavra".

E como ele vê a AIDS nos dias de hoje? Por incrível que pareça de modo muito semelhante ao de três décadas atrás, apesar de toda a melhoria na qualidade e divulgação das informações e de uma rede se assistência já estabelecida. "Existe o senso comum de que a AIDS não é mais um sério problema de saúde e que basta tomar uns comprimidos para manejar a situação, mas ignoram os efeitos colaterais, a necessidade de adesão total ao tratamento, de maiores cuidados com a saúde e, o pior, o preconceito. E esses 'fantasmas' só aparecem no momento do diagnóstico, onde as pessoas perdem o chão, quase que literalmente".

Apesar de tudo o que passou, da maneira que lida com a vida e do jeito que estica a mão para ajudar os outros, Volpe rejeita veementemente o rótulo de "exemplo". Sempre teve condições de enfrentar os desafios e uma família ao seu lado, bem como boa formação, dinheiro e um bom plano de saúde. "Exemplo, para mim, é aquela viúva que mora em uma palafita que ameaça cair a cada maré alta, o filho mais velho está cumprindo pena em uma penitenciária, o mais novo já está enveredando pelo mesmo caminho, a filha grávida do terceiro namorado diferente e ela insiste em tomar o coquetel, acreditando que amanhã a vida vai melhorar. Essa senhora, que existe e foi uma das assistidas pelo Hipupiara, é minha fonte de inspiração para continuar atuando de forma cada vez mais apaixonada por um tema que está sendo absolutamente negligenciado por todos os setores da sociedade".

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Sobre o autor

Rodrigo Casarin é jornalista pós-graduado em Jornalismo Literário. Vive em São Paulo, em meio às estantes com as obras que já leu e às pilhas com os livros dos quais ainda não passou da página 5.

Sobre o blog

O blog Página Cinco fala de livros. Dos clássicos aos últimos sucessos comerciais, dos impressos aos e-books, das obras com letras miúdas, quase ilegíveis, aos balões das histórias em quadrinhos.