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Livro nasce de ação por meio de mala direta e quase vira caso de polícia

Rodrigo Casarin

08/09/2016 14h33

 

Foto: João Macul

"Valfrido, seu canalha! Canalha! Pensa que pode sair pisando nos outros assim? Pensa? Canalha! Deveria trocar seu nome de Valfrido Costa Matos para Valfrido Canalha, de tão canalha que você é! Canalha!".

Essa mensagem que moradores de Santa Cecília e Higienópolis, na região central de São Paulo, um dia receberam em suas casas por meio de mala direta dos Correios, no final de 2015. A inexplicada correspondência foi seguida de outras nove, duas por semana, todas elas com ataques ou a defesa de um certo Valfrido. As pesadas acusações de traição e falcatruas partiam de Luciellie e Ademir, respectivamente ex-mulher e ex-sócio do "canalha"

"Vou contar tudo aquilo que você fez com o Seu Antonio! O fim que deu no velho. Eu não me esqueci! E, amanhã, o bairro inteiro vai saber! Lá naquele poste, Valfrido. Naquela árvore onde você deu o golpe de misericórdia no coitado!", dizia outra das correspondências que, ao todo, chegaram a moradores de 9 mil endereços.

E sim, a coroa de flores com o nome de Seu Antonio apareceu sob uma das árvores do bairro, justamente como havia sido prometido. Não bastassem as cartas, pelas ruas algumas intervenções dialogavam com o teor daquelas misteriosas mensagens. Em outro dia, por exemplo, homens-placa ficaram parados em esquinas segurando uma seta dupla, que indicava tanto para a esquerda quanto à direita, com o nome de Valfrido em seu centro.

Tudo isso, na verdade, era uma peça de ficção criada pelo designer Gustavo Piqueira, que agora reuniu o experimento de intervenção urbana no livro "Valfrido?", publicado pela Lote 42, sua parceira desde o início do projeto. Além das dez cartas com a narrativa inconclusiva que os moradores receberam em suas casas, a obra também mostra as outras intervenções promovidas e uma longa discussão sobre elementos utilizados no trabalho.

"Durante o envio dos folhetos e instalação das peças de rua, não havia como saber qual reação das pessoas, a não ser por comentários fortuitos aqui e ali. Pra ser sincero, nem sabíamos se havia, de fato, alguma reação. Foi apenas neste último mês, com o lançamento do livro, que pudemos saber como muitas pessoas da vizinhança reagiram. E foi curioso perceber que elas se envolveram com aquilo muito mais do que podíamos supor. Soubemos, por exemplo, de mais de um condomínio que se reuniu para discutir se deveriam ou não chamar a polícia para 'esclarecer o mistério'", conta o autor.

Segundo Piqueira, no entanto, boa parte das reações foi "menos paranoica". "Muita gente gostou, mesmo sem entender muito bem, e guarda as malas diretas até hoje. Foi interessante notar que, por conta do uso de suportes nada usuais, todos tinham mil teorias sobre o que, afinal, seria aquilo: propaganda de algum produto, campanha eleitoral, peça de teatro… Porém, todas confluíam num mesmo ponto: a certeza de que, uma hora ou outra, o Valfrido 'de verdade' apareceria para explicar tudo. Logo, foi muito interessante perceber o quanto o suporte influenciou a 'classificação' feita pelas pessoas de um conteúdo que, se impresso num livro normal, seria imediatamente associado a um folhetim dos mais tradicionais".

Piqueira ainda explica que a ação é um "desdobramento natural" do trabalho que vem fazendo nos últimos anos de explorar as possibilidades e os limites do livro. A obra impressa, aliás, é somente uma das partes do projeto, não sua principal razão de existir ou uma simples coletânea que explicava a inusitada iniciativa. "Se ele começa com a reunião, em ordem cronológica e bem organizada, de toda a história que contei por malas diretas e ações nas ruas, tomo isso como ponto de partida para o desenvolvimento de uma narrativa quase independente, onde discorro livremente sobre a relação entre texto, imagem e design num livro", diz.

Essa não é a primeira vez que Piqueira e a Lote 42 se unem para criar algo inusitado. No ano passado a parceria já tinha rendido o "Lululux", um livro em forma de aparelho de jantar, e em 2013 lançaram o "Seu Azul", cujo projeto gráfico, assinado pela Casa Rex, estúdio comandado pelo próprio autor, trazia grãos de areia colados na capa da obra.

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Sobre o autor

Rodrigo Casarin é jornalista pós-graduado em Jornalismo Literário. Vive em São Paulo, em meio às estantes com as obras que já leu e às pilhas com os livros dos quais ainda não passou da página 5.

Sobre o blog

O blog Página Cinco fala de livros. Dos clássicos aos últimos sucessos comerciais, dos impressos aos e-books, das obras com letras miúdas, quase ilegíveis, aos balões das histórias em quadrinhos.