Como “Assassin's Creed Syndicate” potencializa a leitura de Charles Dickens
Rodrigo Casarin
15/06/2016 10h20
Da metade para o final do século 19, enquanto esteve nas mãos da Rainha Vitória, a Inglaterra se consolidou como a principal potência do planeta. Muito por conta da exploração de suas vastas colônias pelo mundo – principalmente na África e no sudeste da Ásia – e vivendo o ápice da Revolução Industrial, a produção no país atingia níveis até então nunca vistos. Isso não significava uma boa situação para todos, entretanto.
Como muitos desejam hoje para o Brasil, as regras trabalhistas eram parcas – para não dizer inexistentes. Patrões e trabalhadores podiam costurar livremente seus acordos o que, invariavelmente, significava que o primeiro explorava sobremaneira o segundo. Assim, jornadas de trabalho alcançavam até 20 horas e o lugar das crianças era nas fábricas, não nas escolas. Com isso, se uma pequena parcela da população colhia os frutos do momento que o país vivia e enriquecia voluptuosamente, a maioria dos ingleses continuava bastante pobre – era comum que famílias inteiras vivessem em cubículos do tamanho de um quarto pequeno e precisassem batalhar diariamente para que arrumassem um pedaço de pão para comer, por exemplo.
É nessa realidade que se passa o jogo "Assassin's Creed Syndicate", feito pela Ubisoft e lançado no ano passado para PlayStation 4, Xbox One e computador. Nele comandamos os irmãos gêmeos Evie e Jacob Frye, que têm como missão principal derrubar os templários que comandam boa parte do que acontece em Londres e, ao cabo, dar uma força para a própria Rainha Vitória – o diálogo que a dupla trava com a mandatária em uma das cenas finais do game, com direito a uma grande cutucada no poder estabelecido, é excelente, justifica todo o esforço do jogador para chegar até ali.
Inserir personagens históricos nos jogos é uma das marcas da franquia "Assassin's Creed". Em "Syndicate", além da Rainha, encontramos nomes como o cientista Charles Darwin, criador da Teoria da Evolução, que, dentre outras coisas, pede aos Fryes que lhe ajudem a garantir que uma rara orquídea de Madagascar chegue até ele sem ser apanhada por capangas rivais. Outro grande protagonista da história que pode ser encontrado pelas ruas londrinas é o filósofo socialista Karl Marx, que solicita auxílio para conseguir chegar a um comício sem ser detido pela polícia – era acusado de incitar distúrbios à ordem – e encontrar pelegos que denunciavam encontros de trabalhadores.
Seguindo essa linha, o personagem histórico que melhor se encaixa naquele cenário é o escritor Charles Dickens, inglês que viveu entre 1812 e 1870. Dentre os traços de Dickens explorados no game estão o seu interesse por hipnose – ele chegou a usar o método para tratar uma mulher que afirmava ser perseguida por espíritos, o que virou missão em "Syndicate" – e o fascínio que ele tinha pelo sobrenatural. Autor de grandes clássicos da literatura, como "Oliver Twist", "David Cooperfield" e "Grandes Esperanças", a Londres – e a Inglaterra, por extensão – que o jogador vivencia nesse "Assassin's Creed" é exatamente a mesma que Dickens eternizou em seus livros. É como se o jogo fosse baseado nos próprios textos do escritor.
Nesse aspecto, é importante notar que Dickens foi o responsável por denunciar simbolicamente parte das mazelas que existiam no país e até mesmo ajudar a mudar algumas delas, como a desigualdade e o abismo social então em voga, além de ter desempenhado um papel fundamental para que o trabalho infantil começasse a ser encarado como um sério problema. Então, de acordo com a criatividade do jogador, quando os irmãos Frye libertam crianças que trabalham limpando o chão de fábricas, é como se os personagens fizessem uma espécie de intervenção nos cenários e questões retratados pelo autor. Mais do que isso, em "Syndicate" é normal encontrar pequenos batedores de carteira correndo pelas ruas de Londres. Ao se cruzar o game com a leitura de livros de Dickens, impossível não imaginar que algum daqueles moleques poderia ser Oliver Twist, o órfão desamparado que vivia de fazer pequenos roubos.
Sobre o autor
Rodrigo Casarin é jornalista pós-graduado em Jornalismo Literário. Vive em São Paulo, em meio às estantes com as obras que já leu e às pilhas com os livros dos quais ainda não passou da página 5.
Sobre o blog
O blog Página Cinco fala de livros. Dos clássicos aos últimos sucessos comerciais, dos impressos aos e-books, das obras com letras miúdas, quase ilegíveis, aos balões das histórias em quadrinhos.