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De GTA a Nietzsche, ilustrador faz HQ repleta de referências à cultura pop

Rodrigo Casarin

26/04/2016 09h01

Do jogo de videogame Grand Theft Auto (GTA) ao filósofo Friedrich Nietzsche, de um buldogue a extraterrestres, da ficção científica a clássicos cults do cinema.. "Bulldogma", graphic novel recém-lançada do artista gráfico e ilustrador Wagner Willian é um festival de referências à cultura pop.

A obra nasceu de maneira inusitada: Willian se inspirou em um anúncio sobre a venda de um apartamento no Rio de Janeiro que circulou pela internet. O vendedor alegava se desfazer do imóvel por conta de "abduções alienígenas" que aconteciam na região. A partir disso, o autor nos apresenta a história de Deisy Mantovani, uma ilustradora que leva uma vida ordinária, mas que acaba sendo importunada por uma misteriosa infiltração que surge no quarto do apartamento onde vive.

"Prefiro a personagem comum, com seus dramas pessoais, sobrecarregada pela vida, tentando fugir de si mesma, do que alguém disposto a salvar o mundo, soltando raio lazer dos olhos", diz na entrevista abaixo o autor ao falar da escolha da personagem, habitué de botecos, casas noturnas e festas concorridas que existem em qualquer grande cidade.

"Bulldogma" é o terceiro livro de Willian, que no ano passado ficou em segundo lugar no prêmio Jabuti por conta das ilustrações feitas em "Lobisomem Sem Barba", que sucedeu "O Impossível Cavalo de Bronze", sua obra de estreia.

A história que inicia o "Bulldogma", do apartamento à venda por conta de ETs, é bastante absurda, ainda que real. Como surgiu a ideia de trabalhar com ela?
No "Lobisomem Sem Barba" há uma figura licantrópica caminhando à margem dos minicontos. No "Bulldogma", precisava de uma figura que funcionasse de uma maneira tão ressonante quanto. Sempre fui ligado a questões alienígenas, boto fé que um dia terei meu próprio contato imediato, e essa matéria citada na abertura da HQ caiu como uma luva de veludo – só faltava ser moldada em ferro (risos). Alguém sob o nome de R. Zherig se apropriou da venda real de um imóvel para criar aquele motivo absurdamente genial para se desfazer do apartamento. E foi aí onde tudo começou. Criei uma ficção a partir dessa realidade/ficção, mostrando que outros apartamentos como aquele surgiram em todo o território nacional. Deisy acabou indo morar em um desses apartamentos. Se as abduções ou influências aliens são reais ou não, cabe ao leitor descobrir.

Deisy, a heroína, é uma pessoa totalmente comum. Os super-heróis já perderam a vez nas HQs?
"Onde houver a injustiça, onde houver sofrimento…" (risos). O que o cinema está fazendo, talvez por falta de roteiro ou péssimo momento lúdico, é ir atrás desses superpoderes. Mas eles continuam em peso nas HQs onde, convenhamos, suas histórias são bem mais interessantes. Já os personagens comuns sempre figuraram nos gibis e com imensa força – Will Eisner que o diga. Eu, particularmente, prefiro a personagem comum, com seus dramas pessoais, sobrecarregada pela vida, tentando fugir de si mesma, do que alguém disposto a salvar o mundo, soltando raio lazer dos olhos.

Em uma época de autoficções, a pergunta um pouco inevitável: quanto há de você na protagonista?
Rapaz, eu peso pro lado daqueles que acreditam que toda ficção é autoficcional. A eleição ou aceitação dos temas até a escolha das palavras na boca de um personagem russo do século 19, por exemplo, revelam a autoria. Somos parte daquilo que elegemos. Deisy é parte de mim.

No livro temos referências a jogos, livros, filmes, séries… No entanto, tive a impressão que em poucos momentos os personagens leem livros, assistem algo ou jogam games, por exemplo. É uma geração que consome os ícones sem saber muito bem de onde ele vêm?
Se há uma geração faminta, consumindo tudo aquilo que lhe é empurrado como um foie gras? Receio que sim. Mas não vejo como sendo o caso da Deisy. Ela aparece jogando, transferindo sua realidade para o jogo de videogame ou mesmo no celular, alimentando um buldogue virtual. Há uma página inteira dedicada ao belíssimo "Walden", do Thoreau. Logo no começo percebemos que ela está vendo um vídeo no Youtube, onde um senhor comenta sobre investigar fontes antes de tomar uma notícia como verdade. Então, não, não posso dizer que Deisy pertença a essa geração que desconhece a procedência daquilo que digere. Pelo contrário, ela está bem de olho, inclusive sobre o fim da sinalização dos alimentos transgênicos.

Em certo momento do livro você cita o filósofo esloveno Slavoj Zizek. Colocá-lo em uma HQ é algo bastante inusitado, não?
Zizek gosta de citar elementos da cultura pop em seus argumentos. Já assistiu ao "Guia Pervertido do Cinema"? É sensacional! Quadrinhos, filosofia e psicanálise vivem um poliamor lascado desde há muito tempo. Nietzsche já caminhou sobre várias páginas de HQs. Jogo o farol sobre uma: "Nietzsche em HQ", de Le Roy e Onfray. Freud, Jung, Winnicott, principalmente o último, são largamente citados nos quadrinhos da Alison Bechdel. Todas as referências que sangram da obra do Allan Moore… Se deixarmos as capas voadoras e mutações genéticas de lado, poderemos perceber que existe um mundo igualmente vasto e incrível nos quadrinhos em obras capazes de ascender ao pensamento crítico, geralmente através de personagens bastante comuns. E nem é preciso ir longe. Basta atravessar a rua com Bob e Harvey, cruzar com a Mafalda, colar no jardim com Calvin e Haroldo e parar no campo com uma grande figura que sempre alertou o pessoal para não rebater com tanta força, chamado Charlie Brown.

Lobisomem, cavalo, buldogue… seus trabalhos costumam depender de animais, sejam eles fantásticos ou não?
Realmente, estou montando um bestiário. Sempre fui fascinado por tudo aquilo que subverte, que excede os limites, principalmente aqueles que estraçalham a razão. A animalidade é algo que me cativa muito de maneira literária. Os animais, sejam eles nos contos, nos quadrinhos ou nas pinturas, são um forma de me manter no celeiro, relinchando toda noite. Tem um texto no "Lobisomem Sem Barba" que gosto muito e responde a isso: "Sobre a superfície em estado de calma, essa humanidade animalesca, a figura de um animal lambendo as feridas de uma personalidade moral capaz de negar a completa e primitiva dualidade do homem, era um lobisomem sem barba. Quando a estupidez fala mais doce, quando a vulgaridade é real e lhe concede todos os direitos, quando o sentimento de sua monstruosidade e fraqueza deita-se como pluma sob lume nas veias, essa força inédita que não sugere qualquer tipo de pretensão é apenas você despindo-se diante de mim. Mas já não era possível distinguir quem era homem, quem era…"

Em "Bulldogma", a cerveja artesanal Juan Caloto aparece com bastante destaque? Por que isso e como você escolheu esse rótulo?
A Deisy Mantovani não dispensa uma boa cerveja. Mas qual cerveja? Poderia inventar um rótulo ou propor, até onde eu saiba, uma campanha inédita de merchandising, envolvendo uma combinação perfeita entre quadrinhos e cerveja. Bolei a planilha do merchand, que ia desde o logotipo da cerveja na capa até a Deisy, não só bebendo, como entrando em contato com a cervejaria para também propor um merchandising para o quadrinho que ela estava fazendo. O valor final do merchandising pagaria a impressão da HQ. Em uma jogada interessante, pretendendo seduzir ainda mais as cervejarias, o dinheiro aplicado seria devolvido com as vendas depois que eu publicasse o livro. Ou seja, um merchandising gratuito. Era um ótimo negócio. A Colorado foi a que mais chegou perto de finalizar esse trato, mas no fim não rolou, o que me fez procurar uma editora para publicar a obra. Aí abri o merchandising gratuito para a Juan, que é de um amigo meu.

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Sobre o autor

Rodrigo Casarin é jornalista pós-graduado em Jornalismo Literário. Vive em São Paulo, em meio às estantes com as obras que já leu e às pilhas com os livros dos quais ainda não passou da página 5.

Sobre o blog

O blog Página Cinco fala de livros. Dos clássicos aos últimos sucessos comerciais, dos impressos aos e-books, das obras com letras miúdas, quase ilegíveis, aos balões das histórias em quadrinhos.