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Vencedor do Oceanos é declaração de amor em forma de ensaio biográfico

Rodrigo Casarin

09/12/2015 10h20

"Perco meu biógrafo. Ninguém me conheceu melhor que ele".

É assim que começa o romance "Mil Rosas Roubadas", de Silviano Santiago, com uma frase forte, daquelas dignas de entrar para o hall dos bons começos da nossa literatura. A construção dá o tom do que teremos ao longo da narrativa vencedora do Prêmio Oceanos deste ano, substituto do prestigiado e finado Portugal Telecom.

"Nascemos um para o outro aos dezesseis anos de idade, em Belo Horizonte, nos idos de 1952. Ele me distinguiu então com a transparência que fiz também minha e continuei a fazer minha em 2010, quando o vi pela última vez em vida. Estava deitado no leito do Hospital São Vicente, no Rio de Janeiro. Deitado de costas e com os olhos fechados", continua o narrador, que então resolve construir a biografia de Zeca, seu amigo moribundo, aquele que deveria, ao seu ver, ser exatamente o seu biógrafo, não o contrário.

Professor e pesquisador em história do Brasil, com tese de doutorado sobre os anos 1930, o personagem começa a empreitada de forma tradicional no gênero, remontando aos antepassados e reconstruindo Belo Horizonte, o lugar onde viveram. No entanto, logo se perde – propositalmente, do ponto de vista da construção da obra – e mergulha na relação entre ambos ao longo de mais de 50 anos, seja vivendo grudado a Zeca, seja acompanhando e admirando o amigo de longe, tudo pontuado por muitas referências de diversas artes: teatro, cinema, música, literatura…

O narrador sabe que suas memórias não são nem um pouco confiáveis para construir um registro que, com isenção, aproxime-se de alguma realidade que não aquela ainda viva em sua cabeça. "Quem tateia descontrola-se. Perde a cada passo a certeza sobre o lugar certo das coisas. Reganha o controle pela imaginação. Estou escrevendo romance, reconheço. Adeus biografia", confessa. O que temos então é uma espécie de ensaio biográfico no qual Zeca é elevado a um patamar quase inatingível.

O amor e a paixão que o narrador sente pelo amigo – bastante íntimo em alguns momentos – parece não ter arrefecido ao longo de cinco décadas. Mais que isso, eclode com grande força quando o outro está à beira da morte. "Mil Rosas Roubadas" é isso: a mais pura declaração de amor. Não a declaração fácil que se resume a um "eu te amo", e sim aquela que se manifesta pela admiração a cada movimento dado pelo amado, como se apenas ele fosse capaz até de atravessar a rua com beleza, como se cada instante da vida só valesse a pena se vivido, de alguma forma – fisicamente ou não -, estando ao lado daquela pessoa.

Santiago é um dos críticos literários mais respeitados do país. Publicou cerca de 30 livros, com destaque para "Em Liberdade" e "Stella Manhattan", que já tinham lhe valido diversos outros prêmios – o Machado de Assis, da Acadêmia Brasileira de Letras, pelo conjunto da obra, por exemplo. Desde que lançado, em meados do ano passado, "Mil Rosas Roubadas" vem recolhendo elogios. Falando sobre o livro, o autor foi uma das atrações mais interessantes da Flip de 2014, onde dividiu uma bela mesa sobre "amizade, drogas, Aids e amor gay" com o francês Mathieu Lindon.

O romance é uma homenagem de Santiago ao amigo Ezequiel Neves, produtor musical que morreu justamente em 2010. O título, "Mil Rosas Roubadas", faz referência a uma das letras – "Exagerado", no caso – de Cazuza, artista que o produtor ajudou a descobrir. Há outras conexões da obra com a canção. "Exagerado, jogado aos seus pés, eu sou mesmo exagerado", é dessa forma que o narrador por ser encarado ao reconstruir as memórias do amigo. Resta saber apenas se todo esse amor teria sido inventado.

Man Booker Prize da língua portuguesa

Além de "Mil Rosas Roubadas", foram premiados no Oceanos "Por Escrito", de Elvira Vigna, "A Primeira História do Mundo", de Alberto Mussa, e "Saccola de Feira", de Glauco Mattoso, que ficaram em segundo, terceiro e quarto lugar, respectivamente. Herdando a credibilidade do Portugal Telecom – que vinha galardoando indiscutíveis grandes obras contemporâneas, como "O Sonâmbulo Amador", de José Luiz Passos, e "A Máquina de Fazer Espanhóis", de Valter Hugo Mãe -, o prêmio literário já nasce como um dos mais importantes da nossa língua.

E essa relevância deve crescer ainda mais a partir do ano que vem. Na cerimônia de premiação, que aconteceu ontem, em São Paulo, Selma Caetano, uma das curadoras do Oceanos, anunciou que irão aceitar, a partir da próxima edição, a inscrição de livros de todos os países lusófonos. A ideia é transformar o prêmio em uma espécie de Man Booker Prize da língua portuguesa.

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Sobre o autor

Rodrigo Casarin é jornalista pós-graduado em Jornalismo Literário. Vive em São Paulo, em meio às estantes com as obras que já leu e às pilhas com os livros dos quais ainda não passou da página 5.

Sobre o blog

O blog Página Cinco fala de livros. Dos clássicos aos últimos sucessos comerciais, dos impressos aos e-books, das obras com letras miúdas, quase ilegíveis, aos balões das histórias em quadrinhos.