Álcool, depressão e desaparecimento marcam livro vencedor do Prêmio SP
Rodrigo Casarin
01/12/2015 08h55
"É como se… Como se Deus… ― calculou novamente, olhou pra mim, nos olhos, sem mover a cabeça, voltou a olhar pra baixo, caçando as palavras no chão… como se Deus tivesse piscado o olho, virado pra espantar uma mosca e aí, nesse momento de desatenção, enquanto ele não tava olhando, o mundo muda completamente, só que ninguém nota".
Em um primeiro momento, as recordações que Érica tem de seu pai não são das melhores. Homem rude, que reclamava de viajar com a filha só porque da cabeça dela caiam muitos cabelos, achava uma grande besteira a menina querer ser artista. Alcoólatra, costumava beber um engradado inteiro de cerveja sozinho e chegava a passar dias fora de casa porque, de tão embriagado, sequer conseguia encontrar o caminho de volta ao lar. Mas isso não impede que a protagonista sinta sobremaneira o sumiço de seu pai e se empenhe em descobrir seu paradeiro, evidentemente.
Aluízio que encabeçava a família e seu salário de funcionário público que garantia o funcionamento da casa, então, não demora para que problemas financeiros e estruturais surjam na residência. Mas quando o pai está perdido, como reagir com lógica a uma conta de água alta, por exemplo? Como, apesar do susto, pensar em verificar se há vazamentos em algum canto enquanto por todos os cantos há a falta de um ente querido que não se sabe onde está?
Compreensível que um quadro depressivo assole toda a família de Érica. Sua mãe dobra a quantidade de cigarros que fuma e alterna dias ultra-atarefados com outros que sequer tira a camisola, seu irmão vive em uma "espécie de autismo opcional". A situação da narradora não é diferente: ausência do trabalho, sinusite, crise de pânico… Vamos percebendo e entendendo tudo que aflige a protagonista conforme suas conturbadas memórias são apresentadas, revelando não apenas a relação com o pai, mas também a dificuldade da menina em compreender que precisa encarar a vida adulta.
Érica encontra algum apoio em Vinícius, amigo de escola que não via há cinco anos, mas que prontamente aceita lhe ajudar a procurar pelo desaparecido. Falham. Conforme o drama aumenta, a menina, tal qual o pai, tal qual seus amigos, passa a se consolar no álcool. Chega ao ponto de inventar que é superstição de ano-novo matar uma garrafa de vodca; se não vomitar, os desejos serão realizados.
As bebedeiras não fazem com que supere o trauma pelo desaparecimento, é claro. Com o passar do tempo, as memórias a respeito do homem vão se tornando melhores, mais carinhosas, e a ansiedade a cada toque de telefone diminui – praticamente não há mais chances de ser ele. No entanto, o fantasma de Aluízio permanece presente na mesma proporção que o homem está ausente. A falta de uma explicação para seu fim leva Érica a desejar, sonhar ou delirar com a morte do pai – recurso muito bem executado, que nos remete aos cadernos de Jurandir em "O Sonâmbulo Amador", romance premiado do também pernambucano José Luiz Passos -, o que colocaria ponto final à agonia. Fica claro que para a garota é melhor a certeza de um corpo no caixão do que a eterna dúvida de onde o desaparecido está. Faz sentido, tal sumiço se assemelha mesmo à morte de alguém que permanece vivo, algo muito mais trágico e incompreensível do que a morte em si.
A tragédia particular, no entanto, acaba aproximando Érica do desejado trabalho com as artes plásticas e aí uma passagem do início do romance faz todo sentido: "Não haveria Van Gogh se não houvesse depressão no mundo. Não existiria Gaugin se as famílias permanecessem juntas. Era isso. O mundo se reorganiza". O mundo se reorganiza e os sofrimentos que deixam pessoas à deriva também podem lhes empurrar para novos caminhos na vida – algo nem sempre positivo, vale deixar claro -, como Débora soube muito bem mostrar nesse denso "Enquanto Deus Não Está Olhando", merecidamente premiado, que nos apresenta uma promessa para nossa literatura.
Também ganharam o Prêmio São Paulo Micheliny Verunschk, com "Morte de Uma Santa Suicida", na categoria Melhor Autor Estreante com Mais de 40 Anos, e Estevão Azevedo, com "Tempo de Espalhar Pedras", eleito o Melhor Livro do Ano. O anúncio dos vencedores aconteceu na noite dessa segunda-feira, dia 30.
Sobre o autor
Rodrigo Casarin é jornalista pós-graduado em Jornalismo Literário. Vive em São Paulo, em meio às estantes com as obras que já leu e às pilhas com os livros dos quais ainda não passou da página 5.
Sobre o blog
O blog Página Cinco fala de livros. Dos clássicos aos últimos sucessos comerciais, dos impressos aos e-books, das obras com letras miúdas, quase ilegíveis, aos balões das histórias em quadrinhos.