Vitória na quarentena: finalmente me entendi com “Cem Anos de Solidão”
Outro dia, numa entrevista ao jornal britânico The Guardian, após ser perguntando sobre algum livro que não conseguiu terminar de ler, o escritor André Anciman, de "Me Chame Pelo Seu Nome" (Intrínseca), tascou "Moby Dick". Faltou paciência para seguir em frente com o clássico de Herman Melville, argumentou.
Desconheço leitor assíduo que não tenha passado por isso com algum grande livro que, durante a leitura, acaba se mostrando principalmente um livro grande, arrastado. Alguns títulos são recorrentes nessa categoria de "iniciados, mas jamais vencidos", digamos assim: "Em Busca do Tempo Perdido", de Proust (podemos levar em conta só o primeiro dos sete volumes, sem problemas), "Ulysses", de James Joyce, "A Montanha Mágica", de Thomas Mann…
Da minha parte, o meu grande livro de leitura empacada era "Cem Anos de Solidão", obra mais famosa de Gabriel García Márquez, outro que é presença recorrente nessa abreviada lista que comecei a traçar no parágrafo anterior. "Muitos anos depois, diante do pelotão de fuzilamento, o coronel Aureliano Buendía havia de recordar aquela tarde remota em que seu pai o levou para conhecer o gelo", começa a narrativa, aqui traduzida por Eric Nepomuceno e editada pela Record.
Devo ter encarado esse começo quatro ou cinco vezes. Algumas leituras são assim: parecem incontornáveis, impossíveis de ignorar, mas, ao mesmo tempo, apresentam-se como monumentos indecifráveis. Passava pelo célebre inicio de Gabo, porém logo me cansava daqueles montes de Arcádios e Aurelianos, daquela confusa família Buendía, daquela Macondo que me era entuchada como um paradigma de mundo fantástico dos trópicos.
E o problema não estava em Gabo. Minha admiração pelo vencedor do Nobel de Literatura de 1982 sempre foi grande. Na faculdade e na especialização, seus textos jornalísticos estavam entre os meus favoritos; "Relato de um Náufrago" é daqueles livros que marcaram a vida. Da ficção, me entendia bem contos e romances como "Memórias de Minhas Putas Tristes". Conforme os anos passavam, cada vez gostava mais de García Márquez, enquanto fracassava a cada nova tentativa com "Cem Anos de Solidão".
Mas eis que veio a quarentena.
Gabo tem sido um parceiro frequente nessa época de clausura. Primeiro precisei apontar que um texto piegas que circula pelo WhatsApp não tem nada a ver com "O Amor nos Tempos do Cólera", romance publicado pelo colombiano em 1985. Também aproveitei o ócio para finalmente assistir ao documentário "Gabo: A Criação de Gabriel García Márquez", disponível na Netflix. É um filme bom, que esmiúça as convicções e contradições políticas do escritor e traz detalhes saborosos, como a maneira que o tal Grupo de Barranquilla encarava a literatura: a coisa mais importante da vida, mas que não deve ser levada tão a sério. Além disso, foi legal encontrar Juan Gabriel Vásquez, conterrâneo de Gabo, conduzindo a narrativa; dele, recomendo com força o romance "O Ruído das Coisas ao Cair" (Alfaguara).
E, como vocês sabem desde que viram o título deste texto, me entendi com "Cem Anos de Solidão". Uns 17 anos depois do primeiro fracasso, enfim me encantei por Macondo, que tardiamente entra para o meu hall de lugares fictícios favoritos. Foi uma conquista lenta, uma dança com as palavras que durou uma semana, talvez dez dias. Mas agora posso dizer: que livro, amigos, que livro! Depois de tantos desencontros, a sensação de colocar esse título na lista do que já li é mesmo de vitória
Não vou ficar aqui fazendo elogios e destacando aspectos positivos (e alguns problemáticos, é verdade) de um romance que vem sendo incensado e debatido desde 1967. Só não posso deixar de registrar uma coisa. Mais do que uma metáfora da nossa porção do continente, é em "Cem Anos de Solidão" que estão as verdadeiras veias abertas da América Latina — que me desculpe o camarada Eduardo Galeano, outro escritor que adoro.
Talvez volte em outro momento ao romance de Gabo para escrever sobre alguns pontos específicos. A guerra civil, a terra latino-americana como plantação (ou pasto) do mundo, a truculenta e eterna colonização, os militares que trabalham com a morte covarde numa mão e a desfaçatez em outra, todos esses são pontos que permanecem bem atuais.
Deixo aqui um dos meus parágrafos favoritos do livro:
"Fazia três meses que não chovia, e era tempo de seca. Mas quando o senhor Brown anunciou sua decisão, precipitou-se por toda a zona bananeira o aguaceiro torrencial que surpreendeu José Arcádio Segundo no caminho para Macondo. Uma semana depois continuava chovendo. A versão oficial, mil vezes repetida e reiterada por todo o país e por tudo que era meio de divulgação que o governo encontrou ao seu alcance, acabou se impondo: não houve mortos, os trabalhadores tinham voltado satisfeitos para suas famílias, e a companhia bananeira suspendia suas atividades enquanto a chuva não parasse. A lei marcial continuava, pura prevenção caso fosse necessário aplicar medidas de emergência para a calamidade pública do aguaceiro interminável, mas a tropa estava aquartelada. Durante o dia os militares andavam pela correnteza das ruas, com as calças enroladas até a metade das pernas, brincando de naufrágio com as crianças. De noite, após o toque de recolher, derrubavam as portas a coronhadas de fuzil, arrancavam os suspeitos de suas camas e os levavam numa viagem sem volta. Era ainda a busca e o extermínio dos malfeitores, assassinos, incendiários, revoltosos do Decreto Número Quatro, mas os militares negavam tudo aos próprios parentes de suas vítimas que lotavam o escritório dos comandantes à procura de notícias. 'Com certeza foi um sonho', insistiam os oficiais. 'Em Macondo não aconteceu nada, nem está acontecendo, nem acontecerá nada nunca. Este é um povo feliz'. Assim consumaram o extermínio dos chefes sindicais".
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