Moraes Moreira, a poesia e o chorare pelo Brasil que se vai
Numa paisagem entre o pão e a poesia
entre o quero e o não queria
entre a terra e o luar
não é na guerra, nem saudade nem futuro
é o amor no pé do muro sem ninguém policiarÉ a faculdade de sonhar é uma poesia
que principia quando eu paro de pensar
pensar na luta desigual, na força bruta, meu amor
que te maltrata entre o almoço e o jantar.
Moraes Moreira cantava esses versos de "Pão e Poesia", mas, se quisesse, poderia muito bem recitá-los. O músico e compositor que há pouco se foi era um grande apaixonado pela literatura. Dentre suas referências artísticas, extrapolava cantores e instrumentistas; citava alguns gigantes de nossas letras: Guimarães Rosa, Drummond, João Ubaldo Ribeiro, Jorge Amado….
Daquela que talvez seja a forma mais popular de poesia, no entanto, que se alimentou desde a infância. O cordel lhe acompanhou durante toda a carreira e, simbolicamente, serviu de norte para um de seus trabalhos mais recentes: o disco "Ser Tão", de 2018, que deu origem ao show "Música e Poesia".
Membro da Academia Brasileira de Literatura de Cordel desde 2016 (sim, até para o cordel há fardão), contava em entrevistas que devia o ritmo, a métrica e a sagacidade de suas composições à arte de Leandro Gomes de Barros e outros tantos. Com o passar do tempo, começou a se definir mais como cantador do que como cantor, acreditando que isso o reaproximava dos artistas populares.
Assumindo-se poeta, Moraes Moreira também deixou seus versos em livros. Em "Dá Pra Viver Sem Cultura?", reuniu meia dúzia de peças num magrelo de 32 páginas lançado pela Numa, mesma casa pela qual publicou "Poeta Não Tem Idade". Este, de 2016, é um volume maior, com mais de 70 poemas nos quais o baiano de Ituaçu repassa momentos da infância e versa sobre temas como família, amizade e a própria existência. Em "A Letra e a Poesia", por exemplo, burilou sua paixão pelas palavras:
Não dou razão a ninguém
Nessa conversa eu não entro
Bem-vindo o que vem de dentro
E fora da Academia
Partindo desse princípio
Quem me atrai são os loucos
Que celebram como poucos
Música e poesiaEu quero lê-las em livros
Eu quero ouvi-las em discos
Eu faço lá meus rabiscos
Multiplicando os ofícios
Exercitando a virtude
Na profusão das imagens
Na integração das linguagens
Eu quero todos os vícios[….]
Eu quero todas as mídias
Fazendo como quem sabe
Se alguma coisa me cabe
Que seja assim porque é
No espaço desse universo
A inspiração me projeta
Um vagabundo poeta
Ou um letrista qualquer*.
Dessa forma, não surpreende que o último ato artístico de Moraes Moreira seja um poema. E um poema sobre o nosso tempo, sobre o grande drama em que estamos metidos. Em suas redes sociais, publicou "Quarentena", no qual parte da pandemia para construir versos bastante politizados (passa, inclusive, pela falta de respostas para a morte de Marielle Franco), mostrando-se ciente de que não há como dissociar um problema tão grave das ações dos nossos políticos:
Até aceito a polícia
Mas quando muda de letra
E se transforma em milícia
Odeio essa mutreta,
Pra combater o que alarma
Só tenho mesmo uma arma
Que é a minha caneta.
Lamentemos a morte de Moraes Moreira. Enquanto escrevo este texto, o início de "Preta Pretinha" não sai da minha cabeça: "Eu ia lhe chamar/ enquanto corria a barca….". Impossível falar do artista sem lembrar dos Novos Baianos, sem lembrar do "Acabou Chorare". Ao que tudo indica, nosso chorare ainda durará muito tempo. Precisávamos de mais canetas como a do artista funcionando por aqui. A morte de Moraes Moreira é mais um triste episódio nesse Brasil que parece também estar indo embora.
*Poema retirado do blog Acontecimentos, do poeta Antonio Cicero.
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