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Estupros, tráfico e mortes: livro destrincha história de João de Deus

Rodrigo Casarin

08/04/2020 09h46

No dia 7 de dezembro de 2018, o programa "Conversa com Bial" levou ao ar mulheres que fizeram as denúncias iniciais que resultaram na prisão e na condenação de João Teixeira de Faria, o João de Deus, por estupro e outros crimes sexuais. O médium que fez fama internacional a partir da pequena Abadiânia*, cidade no interior de Goiás, hoje responde a mais de 350 processos. A celebridade e seu advogado negam todas as acusações.

Para reconstruir a trajetória de João de Deus, o jornalista Chico Felitti, autor do elogiadíssimo "Ricardo e Vânia" (Todavia), imergiu na história do médium e partiu para Abadiânia para ver como estava a cidade após a prisão de João. Por lá, tentou ouvir moradores que o ajudassem em seu trabalho. Não foi fácil. Encontrou um povo que prefere não falar do passado. "É preciso entender o silêncio dessas pessoas, o que não significa que se deva respeitá-lo. Este livro é um esforço para não deixar que o silêncio vença", escreve o jornalista em "A Casa – A História da Seita de João de Deus", que acaba de publicar também pela Todavia.

A história de João de Deus é menos singular do que parece. Repete um enredo que encontramos com certa facilidade por aí: alguém esperto e dotado de supostos poderes parte para um território onde o Estado é praticamente ausente e o povo implora por atenção e cuidado. Ao angariar seguidores, o sujeito se transforma num ator importante na região e cresce inclusive politicamente. Com a expansão dos negócios, a grana se avoluma e crimes de diferentes escalas começam a ser praticados: lavagem de dinheiro, contratação de capangas, subornos….

Ficando no campo religioso, João de Deus se assemelha a gente como Osho, o líder da antiga comunidade Rajneeshpuram, nos Estados Unidos, e Jim Jones, de Jonestown, na Guiana, que levou seus seguidores ao maior suicídio coletivo da história. Já na praia da pseudo-medicina, lembra, com uma escala de sucesso de público absurdamente maior, os passos do sinistro John R. Brinkley, que atuou nos Estados Unidos e no México e garantia curar seus pacientes apostando em práticas como implante de testículos de bode. O brasileiro dizia sustentar sua seita sobre três pilares: fé, amor e caridade. Com intervenções como chupar feridas de pacientes e cuspir num balde o pus com as demais secreções, a partir da década de 1970 começou a cativar seu público.

Cobrando por tratamentos e vendendo produtos supostamente milagrosos, João de Deus enriqueceu. Andava com escolta de uma dezena de homens fortemente armados, responsáveis por assegurar sua vida luxuosa. Crentes de diversas partes do Brasil rumavam para o interior de Goiás. A fama transcendeu as fronteiras. Dentre os que queriam sua atenção, famosos como Xuxa e Oprah Winfrey. Todos iam para Abadiânia em busca das intervenções oferecidas pelo médium que garantia incorporar mais de 30 espíritos diferentes e curar qualquer tipo de doença.

"Na prática, todas as entidades agiam da mesma maneira, com leves mudanças de voz e gestual, e efetuavam as mesmas cirurgias espirituais: raspagem de olho, inserção de uma tesoura pela narina, incisões no baixo-ventre, no alto das costas e rente ao sulco da coluna vertebral. Elas até apresentavam os mesmos cacoetes gramaticais, preferindo a segunda pessoa à terceira ('crês', 'dedicas', 'esperais'). Mas só diziam uma ou duas frases antes de abrir os trabalhos. Assim como o homem que as recebia, elas eram de poucas palavras", escreve Felitti em "A Casa", e aqui voltamos para as partes mais interessantes do trabalho do jornalista.

Escrevi acima que, em Abadiânia, Chico encontrou um povo que se recusava a falar sobre o passado, mas sempre há exceções. E essas exceções, junto com o trabalho de pesquisa em arquivos e documentos, sustentam o bom livro-reportagem. Nele encontramos, por exemplo, revelações sobre um dos golpes que João de Deus costumava aplicar: "Ele pegava um Cibazol. Mascava bem. E se você passasse aquele pó na mão e depois jogasse na água, aquilo ficava vermelho. Então ele mandava a pessoa comprar água mineral e, depois de operar, pedia para jogarem água nas mãos dele. E parecia que escorria sangue", conta uma das fontes. Pessoas que se passavam por paralíticas para, na sequência, fingirem ter sido curadas pelo médium também atuavam nas falcatruas.

Os crimes de João de Deus extrapolam a falsa medicina. Em 1985, foi detido com uma tonelada de minério radioativo extraído de um garimpo clandestino. Diversos assassinatos também rondam o seu nome – na cidade que tinha sob os pés, realizavam enterros sem registros oficiais. E há os inúmeros casos de atentados sexuais. No livro, Chico registra coações, estupro de menores e ouve algumas das mulheres violentadas pelo médium. "A gente faz cada coisa idiota na vida. Eu sei que vão pensar que eu sou uma idiota, mas na hora fazia sentido. Parecia que as coisas lá dentro não eram iguais às coisas lá fora. Eu acreditava que ia encontrar a cura lá", diz uma das estupradas.

A narrativa de Chico alterna entre o passado de João de Deus e o que o jornalista encontrou em Abadiânia após a ruína do médium. A vida na cidade mudou radicalmente. Lojas fecharam, preços de hotéis despencaram e uma forte emigração passou a ser notada. Sem o principal alicerce de sua economia, o lugar precisa se reinventar. Ou seguirá presa ao passado para proteger uma figura que já se foi.

*Atualizado às 11h40 para corrigir o nome da cidade.

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Sobre o autor

Rodrigo Casarin é jornalista pós-graduado em Jornalismo Literário. Vive em São Paulo, em meio às estantes com as obras que já leu e às pilhas com os livros dos quais ainda não passou da página 5.

Sobre o blog

O blog Página Cinco fala de livros. Dos clássicos aos últimos sucessos comerciais, dos impressos aos e-books, das obras com letras miúdas, quase ilegíveis, aos balões das histórias em quadrinhos.