Fake: texto sobre quarentena que circula no "Zap" não é de García Márquez
*Atualizado às 10h26 com informação sobre a verdadeira autoria do texto.
É provável que você já tenha recebido este diálogo em seu WhatsApp:
– Capitão, o menino está preocupado e muito inquieto devido à quarentena que o porto nos impôs!
– O que te inquieta, menino? Não tens comida suficiente? Não dormes o suficiente?
– Não é isso, Capitão. É que não suporto não poder ir à terra e abraçar minha família.
– E se te deixassem sair do navio e estivesses contaminado, suportarias a culpa de infectar alguém que não tem condições de aguentar a doença?
– Não me perdoaria nunca, mas para mim inventaram essa peste.
– Pode ser, mas e se não foi inventada?
– Entendo o que queres dizer, mas me sinto privado da minha liberdade, Capitão, me privaram de algo.
– E tu te privas ainda mais de algo.
– Está de brincadeira, comigo?
– De forma alguma. Se te privas de algo sem responder de maneira adequada, terás perdido.
– Então quer dizer, segundo me dizes, que se me tiram algo, para vencer eu devo privar-me de mais alguma coisa por mim mesmo?
– Exatamente. Eu fiz quarentena há 7 anos atrás.
– E o que foi que tiveste de te privar?
– Eu tinha que esperar mais de 20 dias dentro do barco. Havia meses em que eu ansiava por chegar ao porto e desfrutar da primavera em terra. Houve uma epidemia. No Porto Abril nos proibiram de descer. Os primeiras dias foram duros. Me sentia como vocês. Logo comecei a confrontar aquelas imposições utilizando a lógica. Sabia que depois de 21 dias deste comportamento se cria um hábito, e em vez de me lamentar e criar hábitos desastrosos, comecei a comportar-me de maneira diferente de todos os demais. Comecei com o alimento. Me impus comer a metade do quanto comia habitualmente. Depois comecei a selecionar os alimentos de mais fácil digestão, para não sobrecarregar o corpo. Passei a me nutrir de alimentos que, por tradição histórica, haviam mantido o homem com saúde. O passo seguinte foi unir a isso uma depuração de pensamentos pouco saudáveis e ter cada vez mais pensamentos elevados e nobres. Me impus ler ao menos uma página a cada dia de um argumento que não conhecia. Me impus fazer exercícios sobre a ponte do barco. Um velho hindu me havia dito anos antes, que o corpo se potencializava ao reter o alento. Me impus fazer profundas respirações completas a cada manhã. Creio que meus pulmões nunca haviam chegado a tamanha capacidade e força. A parte da tarde era a hora das orações, a hora de agradecer a uma entidade qualquer por não me haver dado, como destino, privações graves durante toda minha vida. O hindu me havia aconselhado também a criar o hábito de imaginar a luz entrando em mim e me tornando mais forte. Podia funcionar também para as pessoas queridas que estavam distantes e, assim, integrei também esta prática na minha rotina diária dentro do barco. Em vez de pensar em tudo que não podia fazer, pensava no que faria uma vez chegado à terra firme. Visualizava as cenas de cada dia, as vivia intensamente e gozava da espera. Tudo o que podemos obter em seguida não é interessante. Nunca. A espera serve para sublimar o desejo e torná-lo mais poderoso. Eu me privei de alimentos suculentos, de garrafas de rum e outras delícias. Me havia privado de jogar baralho, de dormir muito, de praticar o ócio, de pensar apenas no que me privaram.
– Como acabou, Capitão?
– Eu adquiri todos aqueles hábitos novos. Me deixaram baixar do barco muito tempo depois do previsto.
– Privaram vocês da primavera, então?
– Sim, naquele ano me privaram da primavera e de muitas coisas mais, mas eu, mesmo assim, floresci, levei a primavera dentro de mim, e ninguém nunca mais pode tirá-la de mim.
O papo entre o capitão e o garoto de saco cheio da quarentena circula como se fosse parte de "O Amor nos Tempos do Cólera", um dos livros mais famosos de Gabriel García Márquez. O romance foi publicado em 1985 e, em meio à história de um triângulo amoroso, retrata uma epidemia de cólera no século 19, motivo de a obra ter se tornado um hit nesta época de coronavírus.
Quando recebi a mensagem em meu celular, a grafia do suposto autor me chamou a atenção antes mesmo de chegar ao texto: "Gabriel Garcia Marques". Do nome de Gabo, aquele que levou o Nobel de Literatura de 1982 e também escreveu "Cem Anos de Solidão", apenas o Gabriel está certo. Talvez na hora de transcrever o texto a pessoa não tenha se ligado que o correto é "García Márquez", da mesma forma que pode ter sido mera desatenção o "os primeiras" que aparece lá no meio da conversa. Acontece.
Li o diálogo. Achei ainda mais estranho o papo cheio de liçõezinhas baratas, clichês de autoajuda, ter saído de um livro de García Márquez. A pontuação problemática e a recorrente utilização da segunda pessoa também não batem com a escrita da Gabo (é um vício de escritores medíocres apostarem na segunda pessoa quando querem criar algo dotado de saberes supostamente grandiosos).
Já o "há 7 anos atrás" que pinta na hora em que o homem do mar introduz sua quarentena é ainda mais grave. Poderia ser um vício de linguagem do personagem? Poderia. Mas editor, revisor e, para edição brasileira, também o tradutor, todos certamente diriam: "há 7 anos" ou "7 anos atrás".
Com os indícios de que estava mesmo diante de mais uma citação apócrifa de internet (esta bem grande), solicitei à Record, que publica a obra de Gabo por aqui, o PDF de "O Amor nos Tempos do Cólera". Pois bem, a coisa tem cara de fake, jeito de fake, pontuação de fake… e é fake mesmo. Em nenhuma parte do livro há qualquer coisa parecida com o diálogo acima. O papo, na verdade, foi criado pelo escritor italiano Alessandro Frezza*.
Os personagens de "O Amor nos Tempos do Cólera", no entanto, não são alheios à prática da quarentena. Deixo aqui um fragmento do romance para vocês, este sim, garanto, de autoria de Gabriel García Márquez, em tradução de Antonio Callado:
"O doente morreu quatro dias depois, sufocado por um vômito branco e granuloso, mas nas semanas seguintes não se descobriu nenhum outro caso, apesar do alerta constante. Pouco depois, o Diário do Comércio publicou a notícia de que duas crianças tinham morrido de cólera em diferentes lugares da cidade. Comprovou-se que uma delas tinha disenteria comum, mas a outra, uma menina de cinco anos, parecia ter sido, com efeito, vítima do cólera. Seus pais e três irmãos foram separados e postos de quarentena individual, e todo o bairro foi submetido a uma vigilância médica estrita. Uma das crianças contraiu o cólera e se recuperou muito depressa, e toda a família voltou para casa quando passou o perigo. Onze casos mais se registraram no curso de três meses, e no quinto houve um recrudescimento alarmante, mas no final do ano considerou-se que os riscos de uma epidemia tinham sido conjurados. Ninguém pôs em dúvida que o rigor sanitário do doutor Juvenal Urbino, mais do que a eficiência de sua pregação, tinha tornado possível o prodígio. Desde então, e quando já avançara muito este século, o cólera ficou endêmico não só na cidade como em quase todo o litoral do Caribe e a bacia do Madalena, sem tornar a recrudescer como epidemia. O alarme serviu para que as advertências do doutor Juvenal Urbino fossem atendidas com mais seriedade pelo poder público. Foi imposta a cátedra obrigatória do cólera e da febre amarela, e reconheceu-se a urgência de cobrir os esgotos e construir um mercado distante do despejo do lixo. Contudo, o doutor Urbino não se preocupou na ocasião em proclamar vitória nem se sentiu com ânimo de perseverar em suas missões sociais, porque ele mesmo tinha então uma asa quebrada, aturdido e disperso, e decidido a mudar tudo e a esquecer tudo mais na vida frente ao relâmpago de amor de Fermina Daza".
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