Calma! Teremos a vida para beber, não precisa secar todas as garrafas agora
Um camarada pergunta que horas o pessoal está começando a beber.
Outro diz que finalmente descobriu os prazeres do uísque.
Um terceiro posta uma foto com cerveja. No café da manhã. De uma terça-feira.
Uma amiga se prepara para a live, mas manda mensagem dizendo que preferia abraçar uma garrafa de cachaça.
Há quem tenha dobrado a média de garrafas de vinhos secadas numa semana.
No Instagram, vejo uma pesquisa: você anda bebendo mais ou menos durante a quarentena? Quase 80% dos votantes manguaçam mais nesses tempos sombrio.
Um conhecido que trabalha numa grande rede de supermercados diz que as vendas de bebidas dispararam após a quarentena.
Aqui, olho para adega e me preocupo: até quando o estoque aguentará?
"É preciso estar sempre bêbado. Tudo está aí: esta é a única questão. Para não sentir o horrível fardo do Tempo nos quebrando as costas e nos empurrando para o chão, é preciso embriagar-se sem trégua. Mas de quê? De vinho, de poesia ou de virtude, a seu gosto. Mas embriague-se".
Não saco o famoso – e um tanto desgastado, sei disso – fragmento do francês Charles Baudelaire por acaso. Ele está logo na abertura de "Embriaguez", livreto que acaba de sair pela Editora UFMG. É um breve ensaio no qual o filósofo francês Jean-Luc Nancy intercala reflexões sobre os efeitos do álcool em nossa mente e em nosso espírito com citações etílicas de nomões da literatura e da filosofia: Bataille, Sócrates, Pitágoras, Heráclito, Spinoza, Goethe, Apollinaire… A tradução do texto trôpego é assinada por Vera Casa Nova e Juliana Gambogi.
Baudelaire é imediatamente sucedido por Li Bai, poeta chinês tido como o grande nome da dinastia Tang. Ali pelo século 8, ele cravou: "Como afastar a aflição que nos oprime? O vinho, só o vinho tem esse poder". Sei que durante a aflição da quarentena é tentador transformar essa máxima de Li Bai em filosofia de vida. "Desçam todos os toneis de vinho e caixas de cerveja", dá vontade de gritar da janela.
As palavras de Jean-Luc também afagam a alma – e a consciência, principalmente – dos ébrios. "Beber é absorver. A comida, para ser assimilada, deve ser, primeiro, ingerida e, depois, digerida. A bebida, ao contrário, parece antes espalhar-se imediatamente pelo corpo. É uma impregnação, uma irrigação, uma difusão e uma infusão". Como discordar?
Tem essa outra: "A embriaguez é a condição do espírito, faz sentir sua absoluteza, isto é, sua separação com tudo o que não é espírito – tudo o que é condicionado, determinado, relativo e encadeado. A embriaguez é, em si mesma, a absolutização, o desencadeamento, a ascensão livre até fora do mundo. Ela é o gozo: a identidade dada, no abandono, ao impulso que desliga o idêntico, o corpo resumido ao seu espasmo, o arrancar de um suspiro ou de um tesouro".
Só que a chave do texto de Jean-Luc me parece estar num outro fragmento, este menos adulatório e complacente com a bebida: "Não é fácil estabelecer a diferença entre a dependência e a libertação, o peso e a leveza, a decadência e o sublime. Não é fácil separar a tristeza ou a cólera ébria da alegria dionisíaca que engrandece aquele que a experimenta".
Daí que lembro de todo o pessoal que citei no começo do texto. São tempos difíceis. Bebamos, pois! Mas vamos com calma. Não precisamos secar o mundo inteiro de uma vez. Se Baco quiser, ainda teremos bastante vida e muitas garrafas pela frente. Mais do que nunca, malandro é aquele que sabe a hora de se embriagar apenas de virtude ou de poesia.
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