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Nei Lopes: "A representatividade política do povo negro é quase nula"

Rodrigo Casarin

18/02/2020 10h39

Nei Lopes em foto de Jefferson Meganni.

Conhece Enedina Alves Marques? Ela foi a primeira negra formada em Engenharia no Brasil, isso em meados da década de 1940.

Enedina é um dos grandes nomes da história do país que integram "Afro-Brasil Reluzente – 100 Personalidades Notáveis do Século XX" (Nova Fronteira), livro que apresenta perfis de uma centena de negros que não só ajudaram a construir, mas se destacaram no recente passado brasileiro. Estão no volume desde figurões conhecidos por todos (Pelé, Cartola, Conceição Evaristo, Maju Coutinho, Marielle Franco…) até notáveis menos populares, como o poeta Ricardo Aleixo e a própria Enedina.

O responsável por listar e perfilar as 100 personalidades é Nei Lopes, compositor consagrado e também autor de mais de 40 livros, dentre eles "Dicionário da História Social do Samba", escrito em parceria com Luiz Antonio Simas (Civilização Brasileira), que valeu o Jabuti à dupla, e o romance "O Preto que Falava Iídiche" (Record), finalista do prêmio Oceanos do ano passado. Para a empreitada, Nei adotou como critério a data de nascimento das personalidades, então o leitor não deve estranhar a presença de gente que nasceu no século passado, mas se destacou nas últimas duas décadas, como o quadrinista Marcelo D'Salete, além de outros já mencionados.

"Quando falo de trajetória, falo de protagonismo, do povo negro escrevendo sua própria história e conseguindo aos poucos desconstruir as imagens negativas que o racismo brasileiro veio criando ao longo do tempo", explica Nei na entrevista abaixo, ao responder como notou a mudança na situação do negro no Brasil nas últimas décadas.

Nesse sentido, ele também comentou como vê a condição do povo negro no país após a ascensão da extrema-direita: "O ataque às conquistas alcançadas, principalmente com a Constituição de 1988, hoje é aberto. E isso influi também na percepção dos mais vulneráveis, que, por não entenderem os reais motivos de sua exclusão, começam a dar ouvidos às vozes 'oficiais'".

Ao escrever sobre personalidades que se destacaram em diferentes momentos do século 20, como você percebeu a mudança da situação do negro no Brasil ao longo desse tempo?

Os marcos, para mim, estão na história dos movimentos negros no Brasil republicano, com as publicações da chamada "Imprensa Negra" até 1930; com as ações realizadas no ambiente do Teatro Experimental do Negro, nos anos 40 a 50; na luta pelas ações afirmativas e pelas reparações dos prejuízos causados pelo escravismo; e principalmente com os princípios consagrados na Constituição de 1988, ainda em vigor.

Além de outras, uma obra fundamental para se entender esse trajeto é "A Nova Abolição", do historiador Petrônio Domingues (Selo Negro Edições), que é um dos focalizados no nosso livro "Afro – Brasil Reluzente". E, quando falo de trajetória, falo de protagonismo, do povo negro escrevendo sua própria história e conseguindo aos poucos desconstruir as imagens negativas que o racismo brasileiro veio criando ao longo do tempo.

O livro traz nomes conhecidos de todos os brasileiros, como Pelé e Glória Maria, mas também gente pouco conhecida do grande público, como o do poeta Ricardo Aleixo e Enedina Alves Marques, primeira negra formada em engenharia no país. Dentre esses nomes menos badalados, quais são as histórias ou contribuições que você destaca?

O caso da engenheira Enedina é muito forte, pelo pioneirismo, tanto do ponto de vista étnico quanto sob o aspecto de gênero. Até hoje, pelo que sei, são poucas as mulheres formadas em Engenharia. E nesse pouco, rareiam ainda mais as mulheres negras. Mas o livro enfoca outras histórias de vida exemplares, como a do Carlinhos Sete Cordas, virtuose do violão, hoje colocado entre os maiores no Brasil. Ainda menino, ele achou um violão no lixo e levou pra casa. Isso feriu o orgulho do pai e da mãe, que, embora bem pobres, imediatamente entenderam que tinham que sacrificar o orçamento doméstico para comprar um violão para o filho.

Na hora de fechar a lista com 100 personalidades, ficou especialmente chateado por precisar deixar algum nome de fora?

Foram vários os que não pude incluir, por várias razões, como insuficiência de dados biográficos, apesar dos currículos profissionais disponíveis. E isto porque eu precisava das histórias de vida e, pelo pouco tempo de que dispunha, cerca de seis meses, não consegui.

E hoje, como você avalia a condição do povo negro em nosso país, principalmente após a ascensão da extrema-direita, que muitas vezes adota um discurso claramente racista?

O ataque às conquistas alcançadas, principalmente com a Constituição de 1988, hoje é aberto. E isso influi também na percepção dos mais vulneráveis, que, por não entenderem os reais motivos de sua exclusão, começam a dar ouvidos às vozes "oficiais".

Em entrevista para a Folha você mencionou um dos problemas atuais: "Não existe representatividade política, não foi criada uma bancada de negros no Congresso", disse na ocasião. Por que ainda há essa dificuldade em construir a representatividade política?

A representatividade política do povo negro, na sociedade brasileira, é quase nula. E essa carência se deve exatamente à estrutura sobre a qual se constituiu a sociedade e persiste até hoje. As políticas de Estado, desde a primeira República, tinham o objetivo de "limpar" o Brasil, do ponto de vista alegadamente eugênico, da marca deixada pelo escravismo. Em termos biológicos, a população não embranqueceu. Mas, em termos de valorização social, a subalternização dos descendentes dos antigos escravizados ocorreu sim e continua crescendo. Isso é fácil de constatar pelos nomes de família, os sobrenomes, das pessoas mais influentes no país em todos os setores. Por eles, logo fica claro, salvo raríssimas exceções, que a ancestralidade dessas pessoas proeminentes jamais têm a ver com a da maioria da população nacional.

Ainda no campo da política, você escreve que a força de Marielle Franco, ex-vereadora do Rio de Janeiro, "se eterniza a cada instante, presente, reluzente". Como explicar o que é essa força, sua importância, àqueles que tentam diminuir o nome e a história de Marielle?

O grande escritor francês Balzac, falecido em 1850, escreveu: "De todas as sementes confiadas à terra, é o sangue derramado pelos mártires que dá a colheita mais rápida". Disse tudo.

Nós estamos prestes a entrar na segunda década deste século. Pelo que viu até aqui, quais negros nomes já despontam como favoritos a fazer parte de um livro como este seu, mas que saia daqui a uns 90 anos e faça um recorte do século 21?

Meu banco de dados cresce a cada momento. Mas eu deixo esses nomes "de molho", "marinando", pra ver se confirmam nossas expectativas.

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Sobre o autor

Rodrigo Casarin é jornalista pós-graduado em Jornalismo Literário. Vive em São Paulo, em meio às estantes com as obras que já leu e às pilhas com os livros dos quais ainda não passou da página 5.

Sobre o blog

O blog Página Cinco fala de livros. Dos clássicos aos últimos sucessos comerciais, dos impressos aos e-books, das obras com letras miúdas, quase ilegíveis, aos balões das histórias em quadrinhos.