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Cándido López: o pintor maneta que eternizou a Guerra do Paraguai

Rodrigo Casarin

17/10/2019 10h37

Os quadros do argentino Cándido López, autor de dezenas de pinturas que retratam a Guerra do Paraguai, impressionam. Peguemos, por exemplo, "Después de la Batalla de Curupaytí", exposto no Museu de Bellas Artes de Buenos Aires. Numa batida de olho, o que identificamos são alguns pontinhos vermelhos e outros azuis. Nuvem e fumaça se misturam, bem como a terra firme, a grama e o charco. O terreno em que a cena se passa poderia ser traiçoeiro.

Com um pouco mais de atenção, notamos que os pontinhos azuis e vermelhos são pessoas. Alguém atira em seu inimigo. Outros dois tentam sacrificar um cavalo que, pelo visto, agoniza. Num canto, um vermelho atira em um homem caído. Aliás, são muitos os homens caídos. E são muitos os homens que tentam socorrer companheiros golpeados ou baleados. Na maior parte dos casos, no entanto, esse socorro será aparentemente inútil. A quantidade de corpos no chão e as incontáveis poças de sangue deixam claro que estamos diante de uma carnificina. Os vermelhos levaram a melhor. Perderam sim muita gente, mas alguns ainda se mantém de pé. Diferente dos azuis, quase todos estirados e desamparados.

Só notamos tudo isso, como disse, com um olhar mais afiado – se preciso, amplie a imagem para observar, ela está logo abaixo. Voltando à impressão inicial que o quadro – uma tela panorâmica com 50,6cm por 149,5cm – transmite, a sensação é que estamos diante de um cenário grandioso, enquanto os homens que ali se matam não passam de meros detalhes que vilipendiam a paisagem ao mesmo tempo em que são esmagados pelo céu. Ninguém é protagonista, ninguém está numa condição heroica. No pormenor, parece que encontramos em cada um desses muitos coadjuvantes apenas morte, agonia, sofrimento, perplexidade, sordidez ou crueldade. Haveria muito mais a explorar, mas deixemos isso para outro momento. Colocando o homem no seu lugar, "Después de la Batalla de Curupaytí" é um instigante retrato da guerra.

Cándido López esteve na Guerra do Paraguai. Voluntariou-se para o conflito, participou de batalhas e aproveitou os momentos de pasmaceira – eles existem aos montes, pode acreditar – para criar esboços que depois seriam transformados em muitos dos quadros mais importantes que temos a respeito do conflito que, além de paraguaios e argentinos, envolveu brasileiros e uruguaios – esses últimos três se aliando para quase fazer sumir do mapa os primeiros. O artista recebeu baixa do exército após ter sua mão direita estraçalhada em uma das batalhas de Curupaiti. A versão mais corrente indica que foi alvejado por estilhaços de uma granada.

Por conta do ferimento, médicos precisaram amputar todo o braço de López, que era destro. Uma tragédia tanto para o militar quanto para o pintor, que passou a ser conhecido como "O Maneta de Curupaiti". De volta à Argentina, o artista precisou treinar muito para que conseguisse usar a mão esquerda, a única que restara, para levar às telas os esboços que havia feito. Quando morreu, em 1902, tinha conseguido deixar uma obra que constituiria seu legado, mas diversos desenhos jamais sairiam do rascunho.

É a partir dessa lacuna que a quadrinista argentina María Luque constrói o seu "A Mão do Pintor", que acaba de sair no Brasil pela Lote 42 em tradução de Mariana Sanchez. María é tataraneta de Teodosio Luque, estudante de medicina que foi enviado à Guerra do Paraguai e acabou socorrendo Cándido López. Numa história que mistura elementos autobiográficos com ficção fantástica, o espírito do pintor do século 19 aparece para Maria e pede para que ela, sofrendo de dores na mão boa, finalize as pinturas que ele não conseguiu fazer antes de morrer.

De cara, achei que a quadrinista se colocar num papel central na história foi um mero traço de narcisismo, mas a narrativa caminha bem, inclusive com boas contextualizações sobre a época em que López viveu, e essa minha primeira impressão aos poucos foi ficando para trás. É um livro sensível, que cativa e busca estabelecer um diálogo para que leitores de hoje entendam pormenores de uma guerra de mais de século atrás, enquanto elementos relacionados às artes permeiam a narrativa.

Ainda merece destaque a clara influência de López nos traços deste trabalho de María. Temos a sensação de que estamos diante de uma história contemporânea protagonizada por alguns daqueles pontinhos azuis ou vermelhos de "Después de la Batalla de Curupaytí".

Veja outras imagens do trabalho de María:

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Sobre o autor

Rodrigo Casarin é jornalista pós-graduado em Jornalismo Literário. Vive em São Paulo, em meio às estantes com as obras que já leu e às pilhas com os livros dos quais ainda não passou da página 5.

Sobre o blog

O blog Página Cinco fala de livros. Dos clássicos aos últimos sucessos comerciais, dos impressos aos e-books, das obras com letras miúdas, quase ilegíveis, aos balões das histórias em quadrinhos.