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Sabia? Nas escolas dos EUA, pizza com molho pode ser encarada como legume

Rodrigo Casarin

26/09/2019 10h20

Imagem: Thinkstock.

No começo da década de 1980, influenciado pelo lobby da indústria e preocupado em realizar cortes no orçamento de programas sociais, o secretário de agricultura de Ronald Reagan propôs uma medida bizarra: alçar o ketchup ao mesmo patamar do tomate e passar a tratar a massaroca condimentada como um vegetal. Com isso, perante as leis do país, as merendas escolares não precisariam mais oferecer legumes frescos ou cozidos aos alunos, bastariam dispor de bisnagas que espirram a substância vermelha e tudo estaria resolvido, poupando uma boa grana aos cofres públicos ao mesmo tempo que agradava grandes empresários.

Colocada em pauta, a ideia causou repulsa na opinião pública e não foi adiante. Mas, tempos depois, já no governo Obama, outra bizarrice vingou: o molho industrial (repleto de aditivos e conservantes) que vai na pizza entre a massa e o restante do recheio passou a ser classificado como um legume que pode – e é – oferecido aos alunos. Na prática, isso significa que uma porção de brócolis, por exemplo, pode ser substituída numa boa por uma fatia de pizza de mussarela, desde que, sob o queijo, haja algo vermelho que remeta minimamente ao tomate.

Descobri isso ao ler "O Império do Ouro Vermelho – A História Secreta de uma Mercadoria Universal", livro-reportagem do jornalista francês Jean-Baptiste Malet que saiu há pouco no Brasil pela Vestígio – a tradução é de Arnaldo Bloch. O título venceu o Prêmio do Livro Albert-Londres, na França, em 2018, e foi retirado de circulação na Itália, onde, após o lançamento, a Giaguaro, um dos principais nomes da indústria tomateira do país, entrou na justiça exigindo que o autor retirasse certos trechos da obra.

Apesar desses atrativos, peguei "O Império do Ouro Vermelho" pela peculiaridade do tema abordado. Nunca na minha vida imaginei receber um livro-reportagem sobre como funciona a indústria mundial do tomate. E me surpreendi com o que li. É um livro que se destaca muito mais pelo conteúdo do que pela forma, mas que vale principalmente àqueles que querem ter uma boa ideia de como funciona o capitalismo globalizado que vigora no planeta.

Para investigar o que está por trás de boa parte das latas de molho de tomate vendidas no mundo, Malet conversou com os mais variados agentes da cadeia e passou por lugares como China, Itália, Califórnia e Gana. Encontrou sacanagens por todos esses cantos. Saber que concentrados do produto e tomates geneticamente modificados que mais parecem pedregulhos viajam para lá e para cá até que alguém resolva dissolvê-los em substâncias que oscilam entre o perigoso para a saúde, a suspeitabilidade da procedência e a ilegalidade descarada não chega a causar surpresa. Mas é duro constatar as condições que podemos apontar como escravidão moderna às quais trabalhadores chineses ou imigrantes que procuram por uma sobrevida no sul da Itália são submetidos.

O crescimento da agromáfia e a maneira como as grandes empresas escoam, em diversos casos por meios ilegais, para a África e outras regiões pobres tudo o que há de mais podre na produção – o que, em certos momentos, inclui barris de concentrados de tomate repletos de larvas – são outros pontos de grande desgosto. "O tráfico de concentrado impróprio ao consumo humano se estende além da África. Em fevereiro de 2011, milhares de toneladas de concentrado estragado foram flagradas em Bishkek, no Quirguistão. Os 16 vagões de mercadorias continham produtos chinês. Vencido havia dois anos, esse lote foi comprado inicialmente por um distribuidor dos Emirados Árabes, que, em seguida, o revendeu a um intermediário quirguiz", registra o autor.

Observando depósitos de grandes fábricas, Malet também coloca em xeque uma das supostas maravilhas do capitalismo: a diversidade de produtos e a liberdade de escolha. "Aqui, as conservas falam todas as línguas e se distinguem por suas embalagens. Quanto ao seu conteúdo, é o mesmo [….]. As grandes marcas que os comercializarão serão, em breve, chamadas de 'concorrentes', dispostas nas prateleiras dos mercados, quando, na realidade, são apenas uma mesma mercadoria produzida por uma mesma usina, com seus métodos draconianos"

Poucas linhas mais adiante, o jornalista reflete: "O que foi feito, então, da 'liberdade' de escolha do consumidor? [….] Ao fim de um processo de concentração, feito de economias de escala, as megausinas produzem hoje um tipo de mercadoria acondicionada numa multiplicidade de embalagens. Entretanto, é exatamente a mesma lata contendo o mesmo produto que será consumida no mundo inteiro".

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Sobre o autor

Rodrigo Casarin é jornalista pós-graduado em Jornalismo Literário. Vive em São Paulo, em meio às estantes com as obras que já leu e às pilhas com os livros dos quais ainda não passou da página 5.

Sobre o blog

O blog Página Cinco fala de livros. Dos clássicos aos últimos sucessos comerciais, dos impressos aos e-books, das obras com letras miúdas, quase ilegíveis, aos balões das histórias em quadrinhos.