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Discurso tosco dos machões dita o tom de HQ sobre “cura gay”

Rodrigo Casarin

20/08/2019 09h34

Criança, Acácio do Nascimento curte brincar de boneca e ajudar sua mãe, Mara, nos afazeres domésticos. Mara não gosta muito disso, prefere que o filho jogue futebol com os outros garotos, mas não vê tanto problema nas predileções de Acacinho quanto Galdino, o pai do pequeno. Com medo de que estejam criando um homossexual, Mara e Galdino passam a acossar o filho, procurando por tratamentos para que ele se torne um homem "normal".

Acácio é o protagonista da HQ "Bendita Cura", do quadrinista Mário César dos Santos Oliveira. No primeiro volume, o leitor acompanha a infância do personagem, com o garoto tentando entender por que suas preferências causam repulsa e despertam a violência tanto de seus pais quanto de seus colegas de escola. No segundo volume, após Acácio aparentemente se enquadrar no que as pessoas ao redor dele exigem, é a vez de acompanharmos o jovem na faculdade, onde tenta suprimir suas vontades mais sinceras.

A história de Acácio é marcada pela brutalidade. Se seus pais e seus colegas foram os primeiros a lhe dar "corretivos" para que deixasse seu trejeitos homossexuais de lado, após ameaças, espancamentos e humilhações é Acácio que passa a se policiar, baixando a cabeça para a estupidez e truculência daqueles que o cercam e se sentido sempre ameaçado pela patrulha intimidadora de um suposto deus. Numa narrativa marcada pela intolerância e pelo autoritarismo de gente que vive num país à sombra da ditadura e se vê representada no discurso tosco e virulento dos homens no poder, o próprio personagem acredita que a saída para contornar os desejos pode ser a tal da "cura gay", topando um processo de lavagem cerebral semelhante ao que vemos em "Laranja Mecânica", de Anthony Burgess (Aleph).

Prática com requintes medievais, a terapia de reversão sexual é repudiada por profissionais em todo o mundo e proibida em diversos países – inclusive no Brasil. No entanto, com o avançar do obscurantismo, o discurso a favor dessa violência contra membros da comunidade LGBTQ+ voltou a ser fomentado por aí. Os capítulos de "Bendita Cura", HQ infelizmente necessária, são publicados gratuitamente no Tapas, mas o primeiro volume da história já ganhou uma versão impressa graças a um financiamento coletivo. Agora, o quadrinista busca por apoio para rodar a edição física do segundo volume da narrativa.

Autor de "Bendita Cura", Mário César é um dos criadores e organizadores da Poc Con – Feira LGBTQ+ de Quadrinhos e Artes Gráficas. É o responsável pelos desenhos de livros como "Não Existem Super-Heróis na Vida Real", feito em parceria com Nick Farewell (Devir), e "Púrpura", roteirizado por Pedro Cirne (Sesi-SP). Em 2013 lançou, via vaquinha virtual, "Ciranda da Solidão" (Balão Editorial), que reúne cinco histórias protagonizadas por homossexuais.

Veja mais algumas cenas de "Bendita Cura":

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Sobre o autor

Rodrigo Casarin é jornalista pós-graduado em Jornalismo Literário. Vive em São Paulo, em meio às estantes com as obras que já leu e às pilhas com os livros dos quais ainda não passou da página 5.

Sobre o blog

O blog Página Cinco fala de livros. Dos clássicos aos últimos sucessos comerciais, dos impressos aos e-books, das obras com letras miúdas, quase ilegíveis, aos balões das histórias em quadrinhos.