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Sobrevivente de Auschwitz, Primo Levi é um autor que todos deveriam ler

Rodrigo Casarin

31/07/2019 09h29

Crédito da foto: Marcello Mencarini/AFP

O italiano Primo Levi foi detido pela milícia fascista no dia 13 de dezembro de 1943, aos 24 anos. Para sua sorte, viria a admitir, só foi deportado para Auschwitz em 1944, quando o governo alemão desacelerava a matança nos campos de extermínio por conta da escassez de mão de obra. Ontem escrevi aqui sobre o livro "A Ordem do Dia", do francês Éric Vuillard, que destrincha dois momentos importantes da ascensão nazista. Pois Levi, judeu, foi alvo direto do ápice de todo aquele crescente processo de totalitarismo, racismo, ignorância, estupidez… de trogloditismo, para continuarmos em contato com a resenha passada.

Levi foi deportado com mais 649 judeus para Auschwitz. Dessa leva, apenas três sobreviveram. Levi foi um deles e, se não tivesse morrido em 1987, completaria 100 anos hoje. É ele o autor de "É Isto um Homem?", o relato mais impactante que já li sobre a existência e a sobrevivência – chamar aquilo de vida seria até um desrespeito – no campo de concentração, sob as constantes humilhações infligidas pelos capangas de Hitler.

Formado em Química, os conhecimentos acadêmicos de Levi foram essenciais para que sobrevivesse. Convocado para trabalhar em um dos laboratórios de Auschwitz, tinha uma serventia prática e direta para os nazistas administrando e manuseando, por exemplo, sacos de fenilbeta, substância que grudava em seu corpo e "roía como uma lepra, a pele soltava-se dos nossos rostos em grossas escamas queimadas" (retiro a menção da edição de "É Isto um Homem?" publicada por aqui pela Rocco em 1988, com tradução de Luigi Del Re).

Uma das marcas do relato de Levi é a desesperança durante a simples busca por sobrevida. "Nunca se podem fazer previsões, principalmente se otimistas. O que é certo é que passei um dia sem trabalhar, portanto esta noite terei menos fome – e esta é uma vantagem concreta, assegurada", escreve em um momento. "Nossa sabedoria estava em 'não tentar compreender, não imaginar o futuro, não atormentar-se pensando como e quando tudo isso acabaria, não fazer perguntas nem aos outros nem a nós mesmos", registra em outro, pouco depois de cravar que uma das poucas certezas que tinha era que qualquer mudança no campo sempre significaria uma piora na condição dos prisioneiros.

Há mais incredulidade do que indignação ou raiva na maneira como Levi analisa o tratamento que os nazistas dispensavam aos confinados, mostrando que tanto algoz quanto vítima passam por um processo severo de desumanização – o que não serve de atenuante para os descalabros cometidos pelos algozes. Como pode um homem trancafiar outro homem num lugar sem água, sem comida, sem aquecimento, sem ter onde dormir? Como pode um homem rebaixar outro homem à condição de mais desprezível das criaturas? Como pode um homem tocar outro homem até um pavilhão onde o gás mortal era acionado e milhares de vidas se iam de uma só vez?

"É um homem quem mata, é um homem quem comete ou suporta injustiças; não é um homem que, perdida toda reserva, compartilha a cama com um cadáver. Quem esperou que seu vizinho acabasse de morrer para tirar-lhe um pedação de pão, está mais longe (embora sem culpa) do modelo do homem pensando do que o pigmeu mais primitivo ou o sádico mais atroz", reflete, levando seu olhar humanista a todos que vivem degrado de alguma forma semelhante ao que viveu.

Após ser aprisionado, Levi passa a apenas existir enquanto espera pela morte aparentemente certa. Sua vida está nas mãos de pessoas que, durante o processo de ascensão do nazismo, tinham se transformado em trogloditas. Pessoas como Alex, um "kapo" que cumpria aquilo que prometia: "mostrara-se um bruto violento e traiçoeiro, encouraçado de sólida e compacta ignorância e estupidez", que "aproveitava cada ocasião para se proclamar orgulhoso de seu sangue alemão".

Há outros livros de Levi publicados por aqui: a reunião de poemas "Mil Sóis" (há pouco lançado pela Todavia), a reunião de artigos e ensaios "A Assimetria da Vida" (Unesp), o romance "A Chave Estrela", o também testemunhal "A Trégua" (ambos da Companhia das Letras)… O mais famoso, contudo, é mesmo "É Isto um Homem?", leitura imprescindível, capaz de nos colocar para refletir sobre até onde um ser humano pode ser brutal, estúpido e animalesco com outro ser humano. Deixo aqui o poema homônimo que abre o clássico de Levi:

É Isto um Homem?

Vocês que vivem seguros
em duas cálidas casas,
vocês que, voltando à noite,
encontra comida quente e rostos amigos,

               pensem bem se isto é um homem
               que trabalha no meio do barro,
               que não conhece paz,
               que luta por um pedaço de pão,
               que morre por um sim ou por um não.
               Pensem bem se isto é uma mulher,
               sem cabelos e sem nome,
               sem mais força para lembrar,
               vazios os olhos, frio o ventre,
               como um sapo no inverno.

Pense que isto aconteceu:
eu lhes mando estas palavras.
Gravem-nas em seus corações,
estando em casa, andando na rua,
ao deitar, ao levantar;
repitam-nas a seus filhos.

               Ou, senão, desmorone-se a sua casa,
               a doença os torne inválidos,
               os seus filhos virem o rosto para não vê-los.

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Sobre o autor

Rodrigo Casarin é jornalista pós-graduado em Jornalismo Literário. Vive em São Paulo, em meio às estantes com as obras que já leu e às pilhas com os livros dos quais ainda não passou da página 5.

Sobre o blog

O blog Página Cinco fala de livros. Dos clássicos aos últimos sucessos comerciais, dos impressos aos e-books, das obras com letras miúdas, quase ilegíveis, aos balões das histórias em quadrinhos.