Ailton Krenak: consumidores são adulados até o ponto de ficarem imbecis
Ailton Krenak tem uma trajetória admirável. Ativista socioambiental, reuniu comunidades ribeirinhas e indígenas da Amazônia na Aliança dos Povos da Floresta e ajudou na criação da União das Nações Indígenas (UNI). Ao longo das décadas de 1970 e 1980, encampou a briga que resultou na inclusão de direitos indígenas na Constituição de 1988. Foi ele, inclusive, que protagonizou uma das cenas mais emblemáticas da Assembleia Constituinte, em 1987, quando pintou o rosto com tinta preta enquanto proferia o seu discurso. Krenak, o sobrenome que Ailton utiliza, é o nome de seu povo.
Krenak, um dos convidados da Flip deste ano, foi o entrevistado que mais me chamou a atenção quando assisti à série "Guerras do Brasil.doc". É ele quem em certo momento mira o entrevistador e dispara: "Eu não sei por que você está me olhando com essa cara tão simpática. Nós estamos em guerra. O seu mundo e o meu mundo estão em guerra". Esperava uma postura semelhante em "Ideias Para Adiar o Fim do Mundo", pequeno livro que acaba de lançar pela Companhia das Letras, mas não é o caso. Na obra, as críticas e os alertas sobre os rumos do planeta são feitos, porém o tom é bem mais conciliador.
O volume reúne o conteúdo de duas conferências e uma entrevista realizadas em Portugal entre 2017 e 2019 – a palestra que dá nome à obra é a mais recente, rolou no último mês de março. Ao longo dos três textos, Krenak critica a maneira como o ser humano se vê separado da natureza – ou como um animal superior aos outros seres – e argumenta que essa postura é a responsável por encaminhar a humanidade à própria ruína. As ideias para que evitemos o fim do mundo aparecem mais nos alertas e entrelinhas do que como um didático compêndio de sugestões práticas.
"Como justificar que somos uma humanidade se mais de 70% estão totalmente alienados do mínimo exercício de ser? A modernização jogou essa gente do campo e da floresta para viver em favelas e em periferias, para virar mão de obra em centros urbanos. Essas pessoas foram arrancadas de seus coletivos, de seus lugares de origem, e jogadas nesse liquidificador chamado humanidade. Se as pessoas não tiverem vínculos profundos com sua memória ancestral, com as referências que dão sustentação a uma identidade, vão ficar loucas neste mundo maluco que compartilhamos", questiona e explana Krenak.
Mencionando nomes como Pepe Mujica, ex-presidente do Uruguai, e Davi Kopenawa, líder yanomami que também já esteve na Flip, autor de "A Queda do Céu, Krenak discorre sobre a necessidade de culturas distintivas coabitarem de forma saudável um mesmo espaço e ataca o consumismo:
"Precisamos ser críticos a essa ideia plasmada de humanidade homogênea na qual há muito tempo o consumo tomou o lugar daquilo que antes era cidadania. José Mujica disse que transformamos as pessoas em consumidores, e não em cidadãos. E nossas crianças, desde a mais tenra idade, são ensinadas a serem clientes. Não tem gente mais adulada do que um consumidor. São adulados até o ponto de ficarem imbecis, babando. Então para que ser cidadão? Para que ter cidadania, alteridade, estar no mundo de uma maneira crítica e consciente, se você pode ser um consumidor? Essa ideia dispensa a experiência de viver numa terra cheia de sentido, numa plataforma para diferentes cosmovisões".
Nessa linha, uma resposta que deu em 2018 a uma pergunta sobre o futuro dos indígenas no Brasil serve de resumo para a maneira como Krenak parece encarar os atuais problemas da humanidade: "Tem quinhentos anos que os índios estão resistindo, eu estou preocupado é com os brancos, como que vão fazer para escapar dessa", disse. "A gente resistiu expandindo a nossa subjetividade, não aceitando essa ideia de que nós somos todos iguais. Ainda existem aproximadamente 250 etnias que querem ser diferentes umas das outras no Brasil, que falam mais de 150 línguas e dialetos".
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