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Karina Sainz Borgo: a Venezuela para onde desejo voltar já não existe mais

Rodrigo Casarin

03/07/2019 10h07

Karina Sainz Borgo. Fotos de Lisbeth Salas.

Os alimentos são raros. Materiais básicos para a saúde, mais raros ainda. Remédios são encontrados apenas no mercado negro. Adelaida Falcón gasta os tubos para tentar dar um tratamento digno à mãe doente. O final, no entanto, é inevitável. O caos se aproxima do surrealismo quando Adelaida precisa lidar com as burocracias do enterro.

"Pagar o velório foi ainda mais complicado que custear os últimos dias da minha mãe na clínica. O sistema bancário era uma ficção. Os caras da funerária não tinham maquininha de cartão, também não aceitavam transferências e eu não tinha dinheiro vivo suficiente para completar o valor que me pediam, algo em torno de duas mil vezes o meu salário. Se tivesse, também não o teriam aceitado. Naqueles dias ninguém queria notas. Eram papéis sem valor", relata a personagem.

Não bastasse, ainda precisaria ser ligeira. Assaltos tinham se tornado comuns enquanto os vivos se despediam de seus mortos. Não havia canto realmente seguro naquela cidade. "Estar na rua às seis da tarde era uma maneira estúpida de rifar a existência. Qualquer coisa podia nos matar: um disparo, um sequestro, um assalto. Os apagões duravam horas e conectavam o pôr do sol a uma escuridão perpétua", nos conta Adelaida. Nem a própria casa era um abrigo confiável.

Os Motoqueiros da Pátria se responsabilizavam pelo terror permanente nas ruas tomadas por milicianos. Infantaria com a qual a Revolução varria qualquer protesto contra o Comandante-Presidente, os Motoqueiros ganharam carta branca para saquear e arrasar o que bem entendessem quando o Estado deixou de ter dinheiro para pagá-los. Eram bandidos intocáveis e incontroláveis despidos de qualquer traço de humanidade. "Aquela não era uma nação, era uma trituradora", reflete Adelaida, protagonista de "Noite em Caracas", romance de estreia de Karina Sainz Borgo, jornalista venezuelana que vive desde 2006 em Madri.

Autora de obras não ficcionais como "Caracas Hip-hop", Karina apostou na ficção porque estava mais preocupada em emocionar do que em informar o leitor, conforme conta na entrevista abaixo. E conseguiu. "Noite em Caracas", que acaba de sair por aqui pela Intrínseca, é uma bordoada. Por meio de forma e tratamento estético dignos, nos coloca em meio à tragédia vivida há anos pelos venezuelanos. É um livro tão bom que nem o fato de termos mais uma protagonista formada em Letras e que atua como jornalista me fez torcer o nariz.

No romance, Karina não se limita a retratar o pandemônio que tomou conta de Caracas e de outras cidades. Também passa brevemente pelos bons tempos venezuelanos e pincela como se deu a derrocada do país. Se de início havia preocupação em estocar comida e surpresa quando, em meio a saques, via-se até um homem arrastando um piano pelo meio da rua, com o avançar da ruína até mesmo a personagem se pega pensando no que ela está se transformando. Em certo grau, a decadência moral a todos acomete, invariavelmente. "Já não éramos um país, éramos uma fossa séptica", lemos.

O messianismo, a truculência e a vida de aparências, elementos que não são exclusivos da Venezuela, mas parecem inatos aos países latino-americanos, fazem parte da construção de "Noite em Caracas". "Ninguém queria envelhecer nem parecer pobre. Ocultar, maquiar. Este era o distintivo da pátria: aparentar. Dava na mesma que houvesse ou não dinheiro, dava na mesma que o país estivesse caindo aos pedaços: o assunto era embelezar, aspirar a uma coroa, ser rainha de algo… do Carnaval, da cidade, do país. A mais alta, a mais bonita, a mais tola. Mesmo na miséria que impera na cidade, ainda consigo perceber traços dessa tara. Nossa monarquia sempre foi assim: a dos mais enfeitados, o mais vistoso ou vistosa. É disso que se tratava aquele assunto que rompeu o fluxo das ondas no cataclismo da vulgaridade. Na época podíamos nos permitir esse tipo de coisa. O petróleo pagava as contas pendentes. Ou era isso que pensávamos", nota a protagonista que luta para deixar o país conhecido pela quantidade de coroas de Miss Universo que já ganhou.

Karina é uma das atrações da 17ª edição da Flip, que acontece entre os dias 10 e 14 deste mês – ela conversará com Miguel Del Castillo no dia 12, sexta-feira. Se você ainda não leu nada do pessoal convidado deste ano, recomendo fortemente que deixe as badaladas Sheila Heti e Kristen Roupenian pra lá e comece pela venezuelana, que me respondeu as perguntas abaixo:

Quando você olha para a atual situação da Venezuela, qual é o seu sentimento? Sonha em um dia voltar a viver no país?

É um sentimento de profunda desolação. É quase um duelo, um luto muito profundo e doloroso que se mistura com a raiva, a dor e a sensação de ter sido objeto de um ultraje. Como se no lugar de destruir um país, houvessem-no matado. A Venezuela para onde desejo regressar já não existe mais.

Em que momento você percebeu que a crise no país era incontornável? O que exatamente te fez buscar outro lugar para viver?

Foi logo. Quando em 2006 saí da Venezuela e vim para a Espanha, o fiz porque sempre quis viver em outros lugares, zanzar e aprender com outras experiências, porém, ao mesmo tempo eu tinha uma sensação de ser expulsa. O país não me reconhecia e eu não reconhecia o país.

Na sua análise, qual foi o fator decisivo para que a Venezuela chegasse à situação atual?

O que temos vivido é o resultado de um processo complexo, no qual muitos elementos convergem, todos eles associados a uma democracia jovem, que não soube se defender. No entanto, ressalto uma das causas mais importantes: creio que, como sociedade, temos que corrigir nossa relação desproporcional e tóxica com os líderes messiânicos, desde Simón Bolívar e o culto à sua figura até Hugo Chávez.

E o que a Venezuela precisaria fazer para começar a sair dessa crise?

Convocar eleições livres e transparentes, com observadores internacionais confiáveis.

Você é jornalista, mas optou por escrever um livro de ficção. Por quê?

Não vejo o exercício da literatura como algo alheio ao jornalismo. Dito isso, quero ressaltar que há muitos anos faço jornalismo e também escrevo ficção. Esse é o meu primeiro romance publicado, mas tenho outros três escritos. Além disso, se quisesse informar, teria escrito uma reportagem, mas eu queria emocionar. Por isso escrevi um romance.

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Sobre o autor

Rodrigo Casarin é jornalista pós-graduado em Jornalismo Literário. Vive em São Paulo, em meio às estantes com as obras que já leu e às pilhas com os livros dos quais ainda não passou da página 5.

Sobre o blog

O blog Página Cinco fala de livros. Dos clássicos aos últimos sucessos comerciais, dos impressos aos e-books, das obras com letras miúdas, quase ilegíveis, aos balões das histórias em quadrinhos.