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Acha que pinturas famosas não passam de meros desenhos? Leia Daniel Arasse

Rodrigo Casarin

30/04/2019 10h50

"Vênus de Urbino", de Ticiano.

O que você vê no quadro acima? Uma mulher nua, deitada, levemente inclinada para o lado, apoiada sobre o braço direito, com a mão esquerda próxima ao ventre. Ainda na cama, um cachorro parece dormir profundamente. Ao fundo, outras duas moças: uma mexe no baú, enquanto a outra bisbilhota a ação. É uma primeira impressão válida, mas caminhemos um pouco mais e foquemos na moça nua. O que a mão esquerda próxima à vagina significa? Seria um convite ao sexo? Estaríamos, então, diante de um quadro erótico? E por que a garota estaria sensualizando enquanto outras duas moças estão bem ao seu lado, procurando por por sabe-se lá o quê? Ou será que essas duas moças não estão ali? Ou, melhor dizendo, será que essas outras duas moças não estão num ambiente contíguo ao quarto, mas retratadas em um quadro que está apoiado na cama e encostado na parede forrada com cortinas verdes?

A exploração e as possibilidades de interpretações de "Vênus de Urbino", quadro de Ticiano finalizado em 1538 e atualmente parte do acervo da Galleria degli Uffizi, de Florença, poderia seguir por longos caminhos. E é exatamente isso que faz Daniel Arasse em "Nada Se Vê – Seis Ensaios Sobre Pintura", recém-lançado por aqui pela Editora 34 reunindo escritos do crítico que faleceu em 2003, aos 59 anos. Nos textos, Arasse, argelino que na França se especializou no Renascimento italiano e na arte flamenga e francesa dos séculos 17 e 18, mira seu olhar afiado sob cinco clássicos: "Marte e Vênus Surpreendidos por Vulcano", de Tintoretto, "Anunciação", de Francesco del Cossa, "Adoração dos Magos", de Pieter Bruegel, o Velho, "As Meninas", de Velázquez, e, claro, "Vênus de Urbino", além de apresentar um ensaio sobre enigmas sensuais de Maria Madalena.

"Anunciação", de Francesco del Cossa.

A grande sacada de Arasse nos textos que compõem a obra é fugir da sisudez que comumente vemos em escritos sobre teoria da arte e, com generosidade, criar envolventes situações para mostrar ao leitor o universo de caminhos que a interpretação desses quadros podem seguir. O ensaio sobre a arte de Tintoretto, por exemplo, desenvolve-se como se fosse uma carta de resposta de um especialista a uma colega. Críticos em conflito com as próprias convicções, desdobrando-se para esmiuçar cada nuance das obras, também fazem parte dos personagens "criados" por Arasse. Já no texto sobre "Vênus de Urbino", a aposta é num diálogo entre dois apaixonados por arte.

Aproveitando, voltemos à moça que abre este texto. Voltemos mais precisamente à mão esquerda da bela moça nua. E se ela estivesse se tocando? "Rona Goffen [especialista em história da arte] mostrou perfeitamente como, no século 16, a masturbação feminina era, num contexto preciso, aceita e até mesmo recomendada. Como a ciência dizia que as mulheres só podiam ser fertilizadas no momento do orgasmo, os médicos sugeriam às mulheres casadas que se preparassem manualmente para a união sexual a fim de ter um filho", cogita o personagem que enxerga a musa de Ticiano como uma verdadeira pin-up renascentista.

Para manés em artes plásticas – como eu –, são muitos os potenciais momentos de deslumbramento e ressignificação das pinturas ao longo da leitura de "Nada Se Vê". Na análise de "Anunciação", por exemplo, é esplendorosa a importância que ganha o caracol, num primeiro momento quase imperceptível, presente na borda inferior da pintura. No escrito sobre "Adoração dos Magos", Gaspar, o rei negro, toma uma dimensão que o faz parecer sair do canto direito e dominar toda a cena – de Bruegel, um dos meus pintores favoritos, adoraria ver análises de Arasse para aqueles quadros habitados por dezenas de personagens, como "A Batalha Entre o Carnaval e a Quaresma", "Provérbios Holandeses" e "Jogos Infantis". Já lendo sobre o clássico de Velázquez, temos também uma boa aula de história – tal qual nos outros ensaios desse valioso livro, diga-se.

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Sobre o autor

Rodrigo Casarin é jornalista pós-graduado em Jornalismo Literário. Vive em São Paulo, em meio às estantes com as obras que já leu e às pilhas com os livros dos quais ainda não passou da página 5.

Sobre o blog

O blog Página Cinco fala de livros. Dos clássicos aos últimos sucessos comerciais, dos impressos aos e-books, das obras com letras miúdas, quase ilegíveis, aos balões das histórias em quadrinhos.