Uma maneira de olhar para a literatura que acontece além do nosso umbigo
A literatura brasileira anda muito parada, monotemática, com um monte de histórias com a mesma cara? Vira e mexe essa discussão vem à tona. Já me peguei respondendo que sim. Quem me acompanha há algum tempo já deve ter me visto reclamar da quantidade de narrativas sobre escritores, professores universitários ou jornalistas de classe média que vivem em grandes cidades e estão em conflito com a criação e com sua própria existência. Mas aos poucos fui notando que isso era fruto de um olhar viciado, que privilegia o que está no entorno do meu umbigo paulistano.
Trabalhos de editoras como a soteropolitana ParaLeLo13S, casa do ótimo Evanilton Gonçalves, e a capixaba Cousa – uma espécie de editora boteco, muito melhor do que a onda de editora boutique – são exemplos de lugares que apresentam uma literatura diferente da caricatura traçada. Um evento como o Abril Para a Leitura, que neste ano, em sua décima edição, recebeu gente como Roberto Menezes, autor do bom "Julho É um Bom Mês Para Morrer" (Patuá), me parece ser uma boa oportunidade para se ter contato com múltiplas possibilidades literárias, bem como a Flipop e seu imenso potencial. O Farpa, por sua vez, encontro cuja segunda edição rolou entre os dias 25 e 27 deste mês em Salvador, foi outra ótima chance para conhecer variadas literaturas que estão sendo feitas pelo Brasil.
Na programação do evento, gente de todas as regiões do país e mais de dez estados diferentes. Eram negros, indígenas, brancos, homens, mulheres, jovens, idosos… Diferentes propostas literárias, poetas, prosadores, cordelistas, autores que assumem não escrever para intelectuais, artistas que fazem da palavra um instrumento de ativismo, gente entre o choque e a sintonia com a Academia. Escritores publicados pelas principais editoras do país (Samir Machado de Machado, de "Tupinilândia", lançado pela Todavia, por exemplo), mas também escritores publicados por casas tão pequenas como as outras que já citei aqui – mencionemos Pedro Bomba, de Aracaju, nome para se prestar atenção, autor de "Extremamente Barulhentos Certos Assuntos, Por Exemplo", que saiu pela Urutau.
Na mesa que reuniu cordelistas baianos, enquanto Antonio Barreto sacava a gaita para fazer uma trilha sonora para seus versos, Denisson Palumbo arrumava o próprio celular para transmitir o papo pelas redes sociais. Ao longo da conversa entre a Cristiane Sobral, de Brasília, e a carioca Eliana Alves Cruz, uma necessária troca de ideias para que a presença de negros em eventos do tipo e na própria literatura deixe de ser uma bandeira e se torne algo natural. Entrando em debates linguísticos, menos especialistas em inglês e francês (ou, vá la, alemão) e mais gente falando a respeito de idiomas africanos e indígenas. No encontro performático entre Eliseu Braga, de Rondônia, Caio Padilha, do Rio Grande do Norte, e o baiano Bule-Bule, destaque para o rondonense que publica pela cartoneira Arigóca e apresenta fortes versos sobre conflitos na floresta. Isso para ficarmos em apenas alguns exemplos do que efetivamente podemos chamar de diversidade – com espaço inclusive para os medianos, vale ressaltar, para que não pensem que estamos falando apenas de Clarices ou Machados a serem descobertos.
O grande momento do evento, no entanto, aconteceu longe do teatro do Sesc Pelourinho, palco das mesas. Na escola Sara Violeta de Mello Kértesz, no Rio Sena, bairro dos mais violentos de Salvador, a poeta Nina Rizzi, do Ceará, e o ilustrador Alexandre Leoni, do Mato Grosso do Sul, conversaram sobre a aproximação entre traços e palavras. Em certo momento, uma garota dentre os cerca de cem estudantes na plateia pediu a palavra. Falou de um livro que estava escrevendo sobre a ausência do afeto de pais a seus filhos, o que pode levar os jovens a ter pensamentos tão tenebrosos quanto a possibilidade do suicídio e deixá-los mais vulneráveis às sacanagens do mundo. Outra menina também teve vez, definiu-se como frasista e ganhou aplausos com sua autoajuda. As reações e o interesse da ampla maioria dos jovens deixavam claro o quanto estavam aproveitando, ainda que um azedinho ou outro estampasse no rosto um "que saco isso tudo". Ao cabo, a impressão é que quase todos ali estavam abertos a ouvir e, por que não, produzir sua própria arte. "Todo artista tem que ir aonde o povo está", já cantou Milton Nascimento.
O encontro escolar foi uma amostra de um movimento que vem rolando pelo país. O Farpa (Festival Arte da Palavra) acontece uma vez por ano em alguma cidade diferente do Brasil – no ano passado foi em Arcoverde, interior de Pernambuco – para celebrar o Arte da Palavra, projeto nacional do Sesc de proporções significativas. Criado para servir como uma espécie de serviço de base para o fomento da literatura, a ação leva escritores de todos os estados para circular por regiões diferentes daquelas onde habitam e conversar com alunos de escolas públicas, privilegiando estudantes de ensino médio. Com orçamento na faixa dos R$3 milhões, cerca de 700 encontros são promovidos a cada temporada – em 2019 acontece a terceira –, atingindo um público de aproximadamente 30 mil pessoas. Para se ter uma ideia de por onde dois nomes conhecidos de nossa literatura já passaram graças à ação, Chacal foi para Porto Velho, capital de Rondônia, e Daniel Galera esteve em Crato, no Ceará, onde ouviu uma breve aula de Jayne Pinheiro, aluna do colégio Polivalente: "Não adianta vocês serem escritores e estarem trancados dentro de um quarto enlouquecendo com o livro. Vocês precisam desses momentos. A partir daqui vocês vão sair com mais ideias", disse-lhe a garota.
Um vídeo do astrofísico Neil deGrasse Tyson fez sucesso pela internet há alguns anos. Nele, Neil contava que, quando criança, ao falar que gostaria de ser cientista, pessoas se espantavam. Como assim, um negro que cresceu na periferia ousava pensar em ser algo que não um empregado num emprego não tão desejado assim? Ele terminava a fala lembrando da importância de se permitir que as crianças de todos os cantos possam sonhar com futuros que não aqueles para as quais parecem fadadas. Levar artistas para escolas muitas vezes remotas, localizadas em regiões violentas ou extremamente carentes, é um modo de mostrar aos estudantes formas de se viver que quase sempre parecem completamente distantes do universo deles – para a já mencionada Nina Rizzi, por exemplo, foi fundamental descobrir que a arte é uma alternativa ao mundo do crime, que lhe aguardava de braços abertos. Agora, seria precioso se outras iniciativas surgissem para que esses encontros deixem de ser algo pontual e se tornem parte de um processo amplo, que pode sim levar a alguma transformação social (e aqui seria necessário um trabalho intenso, sério e integrado do poder público).
Voltando ao Farpa, a proposta do evento é ainda reunir escritores que contemplem as mais variadas diversidades para que eles também percebam o mundo que há além da própria bolha. Pelas conversas entreouvidas, a ideia deu certo; era comum escutar autores comentando que descobriram pautas e abordagens estéticas diferentes e autênticas, que fogem das reduções que comumente vemos por aí. Se nesse aspecto o objetivo é tirar os artistas de seus becos e provocar de fato diálogos, não diversos monólogos defendendo a própria bandeira, a predisposição para não ter meramente espelhos como referência de qualidade ajuda bastante.
Abril foi um mês de tretas nesse universo, duas delas bastante relevantes. Primeiro, Mariella Augusta Masagão, doutora em literatura portuguesa pela USP, escreveu na Folha que a poesia brasileira havia se tornado "hermética e sisuda". Se a opinião é mesmo difícil de se sustentar, ainda mais apoiada numa visão aparentemente reduzida de nossa produção poética (citou basicamente nomes publicados por editoras centrais, alguns um tanto longe de qualquer sisudez ou hermetismo), a agressividade com que o artigo foi recebido nas redes mostra que os dias andam pouco propícios para debates maduros. Depois, o Instituto Moreira Salles anunciou o encontro "Oficina Irritada (Poetas Falam)" convidando apenas escritores brancos. A falta de diversidade foi, com justiça, intensamente criticada nas mesmas redes, mas a forma que a instituição escolheu para solucionar a mancada foi a pior possível: cancelou o evento, um inegável prejuízo à poesia, à literatura, à arte.
Nesse ambiente bélico e estridente (belicismo e estridência que muitas vezes se justificam e se mostram fundamentais para que tenhamos necessárias mudanças, é verdade, mas que vira e mexe impossibilita a construção de qualquer ponte), faz muito bem vermos um Farpa – e outros que mencionei no início do texto – acontecer, colocando em contato os diferentes e mostrando a quantidade de Brasil que há além do entorno do nosso umbigo.
Viajei para Salvador a convite do Sesc.
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