Topo

Amor, diálogo e liberdade: o que leva Bolsonaro a esculhambar Paulo Freire?

Rodrigo Casarin

24/04/2019 10h56

"A opressão, que é um controle esmagador, é necrófila. Nutre-se do amor à morte e não do amor à vida".

"Para as elites dominadoras, esta rebeldia, que é ameaça a elas, tem o seu remédio em mais dominação — na repressão feita em nome, inclusive, da liberdade e no estabelecimento da ordem e da paz social. Paz social que, no fundo, não é outra senão a paz privada dos dominadores".

As duas citações estão no livro "Pedagogia do Oprimido" (Paz e Terra), um dos mais importantes de Paulo Freire, filósofo e educador que virou um dos alvos preferidos do governo Bolsonaro. Durante a campanha presidencial, o atual mandatário do país chegou a falar em "entrar com um lança-chamas no MEC [Ministério da Educação] para tirar Paulo Freire de lá". Aliados seguem a mesma linha e, como era de se esperar, exaltados bolsonaristas aderiram ao discurso e também passaram a atacar o estudioso. Mas será que todo esse povo conhece mesmo Freire? Será que todo esse povo conhece algo de sua obra?

Bem, o educador é um dos brasileiros mais respeitados pelo mundo, tanto que recebeu mais de 40 títulos de doutor honoris causa e, na Academia, é o terceiro pensador mais citado em trabalhos escritos em inglês – um feito excepcional. Isso já nos dá uma dimensão de sua importância. Quanto à obra, não tem jeito, quem deseja de fato conhecê-la precisa procurar pelos livros de Freire, colocar a bunda na cadeira e ler – mas dou uma pequena força aos bem-vindos curiosos e apresento abaixo alguns outros trechos de "Pedagogia do Oprimido".

Faz muito sentido alguém que diz com todas as letras que espera que nossas escolas formem pessoas menos politizadas descer a lenha no filósofo. Ao longo do livro, finalizado em 1968, Freire enaltece a formação crítica, problematizadora e baseada na troca de experiências, algo bastante diferente da mera imposição do professor entuchando conteúdo e o aluno abaixando a cabeça apenas para ouvir – e muitas vezes ouvir coisas que não fazem o menor sentido para o universo no qual está inserido. Liberdade, diálogo, revolução e principalmente amor estão entre as palavras que servem de pilares para a obra.

"O método de Paulo Freire é, fundamentalmente, um método de cultura popular: conscientiza e politiza. Não absorve o político no pedagógico, mas também não põe inimizade entre educação e política", aponta o professor Ernani Maria Fiori no prefácio. A ideia principal é que, por meio de uma educação de qualidade, todos os cidadãos estejam aptos a participar efetivamente, com discernimento, autonomia e pleno domínio de seus pensamentos, da vida política no país, contribuindo para uma sociedade mais justa.

Se Freire abre "Pedagogia do Oprimido" dedicando aquelas páginas aos esfarrapados do mundo e depois crava que "Nenhuma 'ordem' opressora suportaria que os oprimidos todos passassem a dizer: 'Por quê?'", também mostra que seu olhar não é ingênuo, que não é desses que acredita que os subjugados possuem uma espécie de bondade inata. Mirando aqueles que deseja emancipar, lembra que muitos "querem a reforma agrária não para se libertarem, mas para passarem a ter terra e, com esta, tornar-se proprietários ou, mais precisamente, patrões de novos empregados. Raros são os camponeses que, ao serem 'promovidos' a capatazes, não se tornam mais duros opressores de seus antigos companheiros do que o patrão mesmo".

Em outro momento, a toada é semelhante: "Há, por outro lado, em certo momento da experiência existencial dos oprimidos, uma irresistível atração pelo opressor. Pelos seus padrões de vida. Participar destes padrões constitui uma incontida aspiração. Na sua alienação querem, a todo custo, parecer com o opressor. Imitá-lo. Segui-lo. Isto se verifica, sobretudo, nos oprimidos de 'classe média', cujo anseio é serem iguais ao 'homem ilustre' da chamada classe 'superior'".

Alguns conceitos presentes em "Pedagogia do Oprimido" são exaustivamente repetidos e, mais de 50 anos após sua escrita, um elemento ou outro do livro acaba cheirando a naftalina (destaco sobretudo a empolgação com a Revolução Cubana). No entanto, o conjunto da obra ainda é bastante oportuno. Ou alguém questionará a atualidade dessas derradeiras linhas: "Se nada ficar destas páginas, algo, pelo menos, esperamos que permaneça: nossa confiança no povo. Nossa fé nos homens e na criação de um mundo em que seja menos difícil amar"?

Veja trechos de "Pedagogia do Oprimido":

Violência de quem oprime

A violência dos opressores, que os faz também desumanizados, não instaura uma outra vocação — a do ser menos. Como distorção do ser mais, o ser menos leva os oprimidos, cedo ou tarde, a lutar contra quem os fez menos. E esta luta somente tem sentido quando os oprimidos, ao buscarem recuperar sua humanidade, que é uma forma de criá-la, não se sentem idealistamente opressores, nem se tornam, de fato, opressores dos opressores, mas restauradores da humanidade em ambos.

E aí está a grande tarefa humanista e histórica dos oprimidos — libertar-se a si e aos opressores. Estes, que oprimem, exploram e violentam, em razão de seu poder, não podem ter, neste poder, a força de libertação dos oprimidos nem de si mesmos. Só o poder que nasça da debilidade dos oprimidos será suficientemente forte para libertar a ambos. Por isto é que o poder dos opressores, quando se pretende amenizar ante a debilidade dos oprimidos, não apenas quase sempre se expressa em falsa generosidade, como jamais a ultrapassa.

Os opressores, falsamente generosos, têm necessidade, para que a sua "generosidade" continue tendo oportunidade de realizar-se, da permanência da injustiça. A "ordem" social injusta é a fonte geradora, permanente, desta "generosidade" que se nutre da morte, do desalento e da miséria.

Solidariedade verdadeira

O opressor só se solidariza com os oprimidos quando o seu gesto deixa de ser um gesto piegas e sentimental, de caráter individual, e passa a ser um ato de amor àqueles. Quando, para ele, os oprimidos deixam de ser uma designação abstrata e passam a ser os homens concretos, injustiçados e roubados. Roubados na sua palavra, por isto no seu trabalho comprado, que significa a sua pessoa vendida. Só na plenitude deste ato de amar, na sua existenciação, na sua práxis, se constitui a solidariedade verdadeira. Dizer que os homens são pessoas e, como pessoas, são livres, e nada concretamente fazer para que esta afirmação se objetive, é uma farsa.

Da mesma forma como é em uma situação concreta — a da opressão — que se instaura a contradição opressor-oprimidos, a superação desta contradição só se pode verificar objetivamente também. Daí esta exigência radical, tanto para o opressor que se descobre opressor, quanto para os oprimidos que, reconhecendo- se contradição daquele, desvelam o mundo da opressão e percebem os mitos que o alimentam — a radical exigência da transformação da situação concreta que gera a opressão.

Amor e diálogo

Sendo fundamento do diálogo, o amor é, também, diálogo. Daí que seja essencialmente tarefa de sujeitos e que não possa verificar-se na relação de dominação. Nesta, o que há é patologia de amor: sadismo em quem domina; masoquismo nos dominados. Amor, não. Porque é um ato de coragem, nunca de medo, o amor é compromisso com os homens.

Onde quer que estejam estes, oprimidos, o ato de amor está em comprometer-se com sua causa. A causa de sua libertação. Mas, este compromisso, porque é amoroso, é dialógico. Como ato de valentia, não pode ser piegas; como ato de liberdade, não pode ser pretexto para a manipulação, senão gerador de outros atos de liberdade. A não ser assim, não é amor.

Somente com a supressão da situação opressora é possível restaurar o amor que nela estava proibido. Se não amo o mundo, se não amo a vida, se não amo os homens, não me é possível o diálogo.

Educador humanista

Simplesmente, não podemos chegar aos operários, urbanos ou camponeses, estes, de modo geral, imersos num contexto colonial quase umbilicalmente ligados ao mundo da natureza de que se sentem mais partes que transformadores, para, à maneira da concepção "bancária", entregar-lhes "conhecimento" ou impor-lhes um modelo de bom homem, contido no programa cujo conteúdo nós mesmos organizamos.

Não seriam poucos os exemplos que poderiam ser citados, de planos, de natureza política ou simplesmente docente, que falharam porque os seus realizadores partiram de uma visão pessoal da realidade. Porque não levaram em conta, num mínimo instante, os homens em situação a quem se dirigia seu programa, a não ser com puras incidências de sua ação.

Para o educador humanista ou o revolucionário autêntico, a incidência da ação é a realidade a ser transformada por eles com os outros homens e não estes. Quem atua sobre os homens para, doutrinando-os, adaptá-los cada vez mais à realidade que deve permanecer intocada são os dominadores.

Revolução autêntica

Estamos convencidos de que o diálogo com as massas populares é uma exigência radical de toda revolução autêntica. Ela é revolução por isto. Dos golpes, seria uma ingenuidade esperar que estabelecessem diálogo com as massas oprimidas. Deles, o que se pode esperar é o engodo para legitimar-se ou a força que reprime.

A verdadeira revolução, cedo ou tarde, tem de inaugurar o diálogo corajoso com as massas. Sua legitimidade está no diálogo com elas, não no engodo, na mentira. Não pode temer as massas, a sua expressividade, a sua participação efetiva no poder. Não pode negá-las. Não pode deixar de prestar-lhes conta. De falar de seus acertos, de seus erros, de seus equívocos, de suas dificuldades.

Elites dominadoras

Através da manipulação, as elites dominadoras vão tentando conformar as massas populares a seus objetivos. E, quanto mais imaturas, politicamente, estejam elas (rurais ou urbanas), tanto mais facilmente se deixam manipular pelas elites dominadoras que não podem querer que se esgote seu poder.

A manipulação se faz por toda a série de mitos a que nos referimos. Entre eles, mais este: o modelo que a burguesia se faz de si mesma às massas com possibilidade de sua ascensão. Para isto, porém, é preciso que as massas aceitem sua palavra.

Muitas vezes esta manipulação, dentro de certas condições históricas especiais, se verifica através de pactos entre as classes dominantes e as massas dominadas. Pactos que poderiam dar a impressão, numa apreciação ingênua, de um diálogo entre elas. Na verdade, estes pactos não são diálogo porque, na profundidade de seu objetivo, está inscrito o interesse inequívoco da elite dominadora. Os pactos, em última análise, são meios de que se servem os dominadores para realizar suas finalidades.

Você pode me acompanhar também pelo Twitter, pelo Facebook e pelo Instagram.

Sobre o autor

Rodrigo Casarin é jornalista pós-graduado em Jornalismo Literário. Vive em São Paulo, em meio às estantes com as obras que já leu e às pilhas com os livros dos quais ainda não passou da página 5.

Sobre o blog

O blog Página Cinco fala de livros. Dos clássicos aos últimos sucessos comerciais, dos impressos aos e-books, das obras com letras miúdas, quase ilegíveis, aos balões das histórias em quadrinhos.