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A amizade presente em O Senhor dos Anéis poderia inspirar nossa política?

Rodrigo Casarin

02/04/2019 10h38

Pippin, Sam, Legolas, Gimli, Gandalf… São muitos os amigos que aparecem para dar uma força para Frodo ao longo da jornada de "O Senhor dos Anéis", obra-prima de J. R. R. Tolkien. Em certo momento, quando o pequeno herói parece estar perto de sucumbir às adversidades, Merry se aproxima com palavras de conforto e apoio: "Pode confiar em nós para ficarmos juntos com você nos bons e maus momentos, até o mais amargo fim". É justamente essa amizade presente na obra de Tolkien que Cristina Casagrande resolveu analisar ao longo do mestrado em estudos comparados de literaturas que defendeu na Universidade de São Paulo em 2017. A dissertação deu origem ao livro "Em Boa Companhia – A Amizade em 'O Senhor dos Anéis'", que chega às livrarias pela Martin Claret.

"Acredito que a amizade se torna mais simbólica naquele momento agudo, com uma catástrofe iminente — mas não realizada — quando tudo está praticamente perdido. Frodo não tem mais o domínio de si, como um ser dopado e desprovido de qualquer liberdade de escolha, ele fracassa. Mas Sam não o julga, ao contrário, se apieda dele. Do outro lado dos portões de Mordor, os povos livres estão dando a vida por aqueles dois hobbits e pela causa comum que eles acreditam. Não há quase nenhum sinal de esperança, mas eles continuam por amor aos seus amigos e por essa causa comum", destaca a pesquisadora na entrevista abaixo, ao eleger o momento mais simbólico da amizade em "O Senhor dos Anéis".

Dentre as principais bases de Cristina para a pesquisa estão Aristóteles – com quem aprendeu que "a amizade era virtude, ou implicava virtude, e que isso tinha uma relação direta com o nosso conceito de felicidade" – e Tomás de Aquino – com quem percebeu que "a amizade mais perfeita está na caridade e isso requer misericórdia: o maior trunfo na Guerra do Anel contra seu Inimigo". Ainda compõem as referências do trabalho nomes como Agostinho, Joseph Campbell, Antonio Candido, Cícero, Freud, Edgar Morin, C. S. Lewis, Todorov e Umberto Eco.

Ao longo da obra, a pesquisadora também analisa a adaptação cinematográfica de "O Senhor dos Anéis" e explora a amizade de diferentes perspectivas. Um dos momentos mais interessantes é quando Cristina mergulha na questão política da obra de Tolkien, proporcionando inevitáveis paralelos com o país dividido que temos hoje. "As chamadas direita e esquerda têm em comum uma guerra discursiva em que não há espaço para ouvir o outro, tampouco para a compreensão e o amor", acredita a pesquisadora, que diz faltar justamente espaço para a amizade em nosso atual cenário.

Cristina Casagrande.

"Eu tinha de enfrentar os críticos literários mais conservadores, que dizem, até hoje, que Tolkien não é literatura", você relata no começo do livro, ao falar sobre seu trabalho na universidade. Qual é a fundamentação desses críticos para, ainda hoje, desprezar Tolkien?

O caso de Tolkien é muito misturado. Alguns acadêmicos o reconhecem e o respeitam, outros torcem o nariz. Uma resposta que explica — mas não justifica isso — é a existência do chamado "cânone" que, por motivos diversas ordens (corporativismo, preconceito, ignorância, formação, gosto pessoal…), adota ou não Tolkien como parte dele. Mas acredito que a entrada de Tolkien nesse dito cânone é inevitável; assim como as vanguardas não eram canônicas e hoje são, Tolkien também será no Brasil; e isso já está acontecendo, ainda que haja muitos desafios.

Uma outra explicação (e não justificativa) para isso é o próprio gênero que o autor "defende". Por um motivo histórico-cultural, os contos de fadas passaram a ser considerados um gênero menor — a Razão quis dar conta de tudo e, com ela, a Ciência e a Tecnologia. Os contos de fadas questionam isso; não negam a Razão e mesmo se utilizam dela, mas denunciam a sua insuficiência e suas limitações. A universidade ainda traz o legado dessa mentalidade racionalista.

Ao longo de "O Senhor dos Anéis", qual é o momento em que a amizade se faz mais marcante, mais simbólica? Por quê?

"O Senhor dos Anéis" em certa medida tem a composição de uma tragédia, a diferença crucial é que ele tem a eucatástrofe — neologismo de Tolkien para a "boa catástrofe", que nega a tragédia, apesar do Espelho de Escárnio e da Piedade que nós, seres humanos, enfrentamos na realidade factual (Mundo Primário) e imaginária (Mundo Secundário). Temos, dizendo de uma forma mais simplificada, o final feliz — mas com coerência naquele universo e no nosso.

Então, acredito que a amizade se torna mais simbólica naquele momento agudo, com uma catástrofe iminente — mas não realizada — quando tudo está praticamente perdido. Frodo não tem mais o domínio de si, como um ser dopado e desprovido de qualquer liberdade de escolha, ele fracassa. Mas Sam não o julga, ao contrário, se apieda dele. Do outro lado dos portões de Mordor, os povos livres estão dando a vida por aqueles dois hobbits e pela causa comum que eles acreditam. Não há quase nenhum sinal de esperança, mas eles continuam por amor aos seus amigos e por essa causa comum.

Qual é a maior lição com relação à amizade que podemos tirar da obra de Tolkien?

O ser humano, apesar de todas as suas misérias, permanece inquieto enquanto não souber amar. A amizade, junto com a caridade (que é o amor a Deus), ecoa para eternidade, pois o amor eros em certa medida se atrela à procriação (não só, mas também) e o afeto à criação, ambos são mais ligados ao corpo; a amizade nos lembra que somos seres espirituais também e não meramente corporais. Tolkien nos lembra que, no auge da batalha contra um Inimigo político comum, o maior desafio é a batalha contra nós mesmos, contra o vilão que está presente em nossa alma (as nossas más inclinações) — a amizade é um dos maiores remédios para isso.

Então, fazendo um paralelo entre a obra e o mundo atual, como a amizade pode servir de base para que pessoas enfrentem seus inimigos políticos?

Uma pergunta difícil e muito importante.

Acho que o atual cenário político tem muito pouco espaço para a amizade. As chamadas direita e esquerda têm em comum uma guerra discursiva em que não há espaço para ouvir o outro, tampouco para a compreensão e o amor. Em uma aula sobre Tolkien e filosofia, tentei abordar isso e encontrei bastante resistência por parte de alguns alunos.

Uma das coisas que está associada à amizade é a misericórdia. É a virtude mais importante em relação aos iguais (ou seja entre seres humanos), de acordo com Tomás de Aquino, que é o teólogo que mais se aproxima da visão religiosa de Tolkien. Na misericórdia, assim como na amizade, enxergamos no outro nós mesmos. Mas ao contrário da inveja ou da vingança, não queremos punir o outro ou tirar algo dele, mas sim, buscamos suprir aquela carência que vemos no outro — seja física ou espiritual —, assim, a maior expressão da misericórdia é o perdão.

Não temos, como numa das grandes guerras mundiais, um inimigo comum e bem definido hoje. De forma oposta, os grupos chamam seus antigos amigos de inimigos, pois não pensam igual a eles. A valorização da amizade de uma forma mais profunda seria um bom remédio para pensarmos diferente — o que todos queremos juntos, o que temos em comum, para que possamos lutar lado a lado, apesar das diferenças, e assim nos tornarmos amigos? O elfo Legolas e o anão Gimli encontraram essa resposta.

Você aponta Gollum como o personagem "instigante e, provavelmente, mais complexo" criado por Tolkien. Por quê?

No "Hobbit", é dito que Gollum comia até mesmo bebês (orques, é verdade, mas bebês). Ele é cruel, hostil e desagradável. Mas a gente gosta dele e até acha graça. Por que será? Ele não é bem um monstro, é uma espécie de hobbit decaído. É cheio de inveja, baixa autoestima, rancor, instabilidade emocional e demais vilezas. Além disso, ele é feio, cheira mal e resmunga o tempo todo. E tem a pior qualidade que qualquer um pode considerar, seja amigo ou inimigo: é traiçoeiro. Ele representa uma espécie de transição nossa entre o bem e o mal, é aquela fronteira entre o que nos torna humanos ou bestiais.

Na construção do personagem, Tolkien cogitou a colocá-lo como fiel a Frodo no final, mas do mesmo modo ele cairia no fogo da Perdição — só que, nesse caso, para salvar o seu "mestre". Gollum é justamente um prato cheio para a prova da misericórdia: enxergá-lo tal como ele é e ainda assim preservar-lhe a vida é a maior prova de fogo dos pequenos heróis de "O Senhor dos Anéis". E é por causa disso, mais do que todas as demais ações, que o Anel foi finalmente destruído.

Puxando a conversa para o meu personagem favorito, qual é o papel de Gandalf para as relações de amizade do grupo que procura destruir o anel?

Gandalf é sinal da Providência Divina. Ele não é da Terra-média, mas de Aman, a Terra Abençoada. Sua natureza é primordialmente espiritual, embora quando vem habitar Arda (Terra), perca alguns de seus poderes pois passa a se ligar à matéria. Quando ele sai de Aman e vai para a Terra-média na forma de um istar (mago), esses poderes são ainda mais diminuídos. Ainda assim, ele é mais poderoso e mais sábio que qualquer elfo. Ele seria, numa analogia que reduziria toda a carga mitológica — mas que nos ajuda a compreender de forma mais didática —, como um anjo encarnado que vem nos ajudar.

Então, Gandalf é sinal da Amizade entre Deus (chamado Eru) e os povos livres da Terra-média, representados pelos demais membros da Sociedade do Anel. O apoio espiritual que eles tanto precisam. Mas como tal, ele vai muito mais aconselhar, orientar e instruir do que fazer o serviço por eles. É verdade que ele também põe a mão na massa e entra nas batalhas, mas não resolve tudo sozinho, ele prepara os amigos da Terra-média para que eles deem o melhor de si até o limite de suas capacidades.

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Sobre o autor

Rodrigo Casarin é jornalista pós-graduado em Jornalismo Literário. Vive em São Paulo, em meio às estantes com as obras que já leu e às pilhas com os livros dos quais ainda não passou da página 5.

Sobre o blog

O blog Página Cinco fala de livros. Dos clássicos aos últimos sucessos comerciais, dos impressos aos e-books, das obras com letras miúdas, quase ilegíveis, aos balões das histórias em quadrinhos.