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Boy Erased é necessário num Brasil cheio de intolerância contra LGBTQ+

Rodrigo Casarin

05/02/2019 10h43

Com Nicole Kidman e Russell Crowe no elenco, o filme "Boy Erased – Uma Verdade Anulada", que traz a história de um jovem que é levado a participar de um processo que prometia "curar" a sua homossexualidade, estava marcado para estrear no Brasil no final de janeiro. Contudo, a Universal Pictures, que o distribuiria por aqui, mudou de ideia e retirou o longa de sua programação argumentando razões comerciais.

No Twitter, Garrard Conley, autor do livro autobiográfico que deu origem ao filme, disse que a decisão era um ato de "censura". Não demorou para que o ator Kevin McHale comprasse a briga e também se posicionasse, este atacando o atual governo brasileiro: "Bolsonaro é uma ameaça à comunidade LGBTQ+ brasileira. Censurar um filme sobre os perigos da terapia de conversão é só o começo". O presidente Jair Bolsonaro, então, utilizou a mesma rede social para retrucar: "Fui informado de que um ator americano está me acusando de censurar seu filme no Brasil. Mentira! Tenho mais o que fazer".

No começo de janeiro, a Intrínseca lançou "Boy Erased", o livro, no Brasil, apostando inclusive numa sobrecapa com o cartaz do filme que não chegou aos nossos cinemas. Ontem a editora se manifestou sobre a polêmica: "Quando decidimos publicar o livro no Brasil, acreditamos que junto com a adaptação cinematográfica de suas memórias poderíamos levar uma mensagem necessária de tolerância e superação para todos que vivem situações semelhantes de repressão a suas sexualidades. Avaliamos que o livro seria uma importante contribuição para debates e que ajudaria a tornar pública a situação que muitos sofrem em silêncio", escreveram numa nota na qual seguem:

"Como muitos, lamentamos a notícia recente de que o filme não será mais exibido nos cinemas do Brasil. Mesmo assim, nossa crença na relevância do relato de Conley e nosso empenho para divulgá-lo permanecem inalterados. Manteremos nossos esforços para a promoção do livro como inicialmente planejado, com a certeza da relevância do tema e de sua contribuição para uma sociedade plural e livre de preconceitos".

Conley cresceu em uma família de batistas missionários que acham que a interpretação literal da "Bíblia" é o único caminho para se chegar a Deus e vivem com a certeza de que o retorno de Jesus é iminente. As pessoas ao seu redor comumente criticavam a leitura de "livros seculares", enquanto o proibiam de escutar Beethoven e Bach por não serem considerados cristãos. Dúvidas e questionamentos não eram bem-vindos; a vida sob a sombra supostamente divina era repleta de ignorância.

Só que desde pequeno Conley tinha interesse por homens. Com a descoberta da sexualidade e o início da vida sexual marcada por episódios de violência, logo constatou que sua predileção era mesmo por meninos e passou a se punir por conta disso. Morria de vergonha e medo só de pensar na reação dos pais quando descobrissem o seu segredo. "Saber da minha homossexualidade seria mais chocante que saber do meu estupro: ou pior, seria como se um ato tivesse se seguido ao outro de forma inegável, como se eu merecesse aquilo", crê.

Quando tudo acontece, a única vontade de Conley é "fazer qualquer coisa para apagar essa parte de mim", por isso aceita ir para uma clínica que promete "curá-lo" – se recusasse, a pena já estava dada: que se mandasse de casa, esquecesse a família e fosse tocar a vida em outro canto. Previsivelmente, a maneira como a organização encara a questão é de uma grande estupidez: para eles, a homossexualidade é uma abominação que está no mesmo patamar de repúdio de pecados como a brutalidade e a pedofilia. Pensam que gays são pessoas sexualmente descontroladas que em algum momento acabarão tendo até "relações com o cachorro de alguém".

O tratamento, logo Conley nota, é uma espécie de lavagem cerebral que procura desmoralizar completamente a pessoa e fazer com que ela passe a ter raiva de si mesma, método que, este sim, acaba por levar pacientes a confusões mentais. O autor, hoje um ativista contrário a ações do tipo, resgata casos de colegas que passaram a questionar a própria sanidade, em certas ocasiões olhando para o suicídio como um bom caminho a seguir.

"Certos dias, acho difícil acreditar que vivi em um mundo baseado em noções tão extremas quanto a autoaniquilação. Então ligo a TV, leio alguns artigos e percebo que o que vivi pode ter sido singular, mas de modo algum desconectado da História. Minorias continuam sendo exploradas e manipuladas tanto por grupos nefastos quanto bem-intencionados, e ideias prejudiciais continuam a gerar novas linhagens políticas em todo o mundo", constata Conley.

Num Brasil que sempre matou muito e mata cada vez mais membros da comunidade LGBTQ+, que se afunda com seus ministros no fanatismo religioso, que se recusa a conversar sobre a sexualidade com os jovens de maneira séria e que elege políticos com discursos raivosos ou nada acolhedores, que legitimam massacres e incentivam falsos milagreiros a ofereceram cura para o que não é doença, "Boy Erased" é uma história importante para mostrar caminhos tenebrosos que deveriam ser combatidos. É uma pena que o filme não estará em nossos cinemas – ao menos por ora –, mas o livro felizmente está aí, em boa parte das livrarias.

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Sobre o autor

Rodrigo Casarin é jornalista pós-graduado em Jornalismo Literário. Vive em São Paulo, em meio às estantes com as obras que já leu e às pilhas com os livros dos quais ainda não passou da página 5.

Sobre o blog

O blog Página Cinco fala de livros. Dos clássicos aos últimos sucessos comerciais, dos impressos aos e-books, das obras com letras miúdas, quase ilegíveis, aos balões das histórias em quadrinhos.