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Enxurrada de lançamentos: como editoras vão lidar com polêmicas de Lobato

Rodrigo Casarin

25/01/2019 10h47

Ilustração de "Narizinho Arrebitado", lançamento da Maurício de Sousa Editora em parceria com a Girassol.

"Prefiro acreditar que, apesar de defender ideias modernistas, Lobato não deixou de ser fruto da época em que viveu. E não acho que essa interpretação de seus textos invalide o encanto de seus livros através dos tempos". É desta forma que Mauricio de Sousa se posiciona sobre as "críticas e polêmicas" que rondam trechos da obra de Monteiro Lobato, "especialmente sobre ser preconceituoso". Ainda segundo Mauricio, "Lobato modificou a maneira de pensar de muita gente. Ele sempre foi uma potência criativa, despertava o senso crítico e aguçava a curiosidade. Toda a sua obra é permeada de debates […] sobre temas públicos, contemporâneos ou históricos".

As palavras estão em "Turma da Mônica – Narizinho Arrebitado" (Mauricio de Sousa Editora/ Girassol), livro ilustrado no qual a turma do Limoeiro se mescla com os personagens d'O Sítio de Picapau Amarelo. Com texto da pesquisadora Regina Zilberman, especialista em Lobato, o título é um dos destaques da enxurrada de reedições e adaptações que estão prestes a chegar às livrarias brasileiras agora que a obra do criador de Emília e companhia entrou em domínio público.

Junto com a possibilidade de retrabalhar personagens como Narizinho, Pedrinho e Dona Benta, as editoras têm um outro desafio: lidar com as polêmicas que envolvem certos textos de Lobato. A principal acusação que lhe pesa é a de que, eventualmente, seus personagens transpareceriam um racismo que emanaria do próprio escritor. Para encarar o assunto delicado, cada casa optou por um caminho.

Tal qual a parceira entre a Mauricio de Sousa Editora e a Girassol, a Autêntica julgou que uma apresentação que abordasse o tema seria o suficiente para dar conta do assunto. A editora, que prepara uma série de reedições do autor com texto integral e original começando por "O Picapau Amarelo" e "Reinações de Narizinho", convidou a escritora e educadora Maria Valéria Rezende para escrever as palavras iniciais da série. Num texto no qual imagina um diálogo entre Narizinho e sua bisneta, que recebe o mesmo apelido, em certo momento lemos:

"Hoje sabemos bem que ainda existe racismo, e é uma coisa horrível. Racismo é a gente achar que pessoas com pele escura ou preta são inferiores às pessoas brancas, e que os brancos merecem melhores condições de vida, de estudo e de trabalho. E é agir de acordo com o que pensa, discriminando e humilhando essas pessoas. Lobato escreveu aquelas histórias há mais de oitenta anos! E havia ainda pouco tempo que a Lei Áurea tinha proibido a escravização dos africanos e de seus descendentes. A população ainda não tinha se miscigenado, quer dizer, se misturado tanto quanto hoje. Agora há brasileiros com todos os tons de pele possíveis, mas naquele tempo a maioria das pessoas ou era branca, ou preta".

Ilustração de Nelson Cruz para "O Pinguim que Andou de Bonde", que sairá pela edição "Meu Primeiro Lobato", da FTD.

Ao ser questionada se as pessoas não julgavam que isso era racismo, a personagem para a qual Maria Valéria dá voz continua:

"As pessoas ainda não tinham, como hoje muitas têm, consciência do absurdo que significava aquela diferenciação ou discriminação, como se chama. Então, Lobato muitas vezes fala de Tia Nastácia dizendo 'a negra' porque isso era natural, na época, e também pra não ficar repetindo o nome dela no mesmo parágrafo! Do mesmo jeito que ele escrevia 'a velha', pra não ficar repetindo o nome de Vó Benta. E Vó Benta tinha só sessenta anos, menos do que sua Vó Anastácia tem hoje! Imagine só se você chamasse sua avó Tatá de velha! Ia levar um grande pito! Hoje, chamar alguém de velha virou uma ofensa! Até inventaram palavras novas para se referir às pessoas que já viveram muito: é 'idoso', 'terceira idade', 'melhor idade' e sei lá mais o quê!".

No final, dizendo não acreditar que Lobato era "racista e 'velhista'", a bisa Narizinho evoca um dos textos mais lembrados por quem refuta a ideia de racismo do autor: "Um dia vou lhe dar pra ler um conto que ele escreveu, chamado 'Negrinha', que mostra a maldade de uma mulher branca e rica que era racista e escravagista mesmo depois da Lei Áurea, e maltratava as pessoas de pele escura. Achava que podia ofender, chicotear, fazer uma menina preta passar fome e sede, como faziam os donos de africanos e seus descendentes escravizados. O conto que Lobato escreveu é uma denúncia da maldade racista daquela mulher branca".

Já a Companhia das Letras promete lançar "Reinações de Narizinho", "O Saci" e "O Minotauro" ainda este ano, bem como uma biografia juvenil do autor assinada por Marisa Lajolo e Lilia Schwarcz, e "A Chave do Tamanho" em 2020. Para assuntos espinhosos, a editora aposta em textos introdutórios que explicam o contexto cultural da época em que os livros foram escritos e enxertos de diálogos em espécies de pop-ups de rodapé nos quais os próprios personagens conversam sobre o vocabulário e os costumes da época, como abaixo:

Trecho de "Reinações de Narizinho" que sairá pela Companhia das Letras.

Enxurrada de Lobato

Outro grande nome da literatura infantil e juvenil que trabalhará com a obra de Lobato é Pedro Bandeira. Ele lançará ainda este ano pela Moderna "Narizinho, a Menina Mais Querida do Brasil", voltado para crianças recém-alfabetizadas. O autor de "A Droga da Obediência" considera Narizinho a personagem mais importante da literatura brasileira junto com Capitu, de Machado de Assis, e é mais um que vê Lobato muito mais como produto de seu tempo do que como um racista.

Já a Nova Fronteira tem em produção dois projetos: uma série dividida em três partes assinada por Sonia Rodrigues, que levará Emília para uma viagem distópica pela história brasileira, e um box intitulado "As Melhores Aventuras do Sítio do Picapau Amarelo", com um par de volumes reunindo histórias do sítio selecionadas pela escritora Luciana Sandroni. Aqui, Luciana apresentará um glossário para contextualizar expressões utilizadas por Lobato. Acolá, a primeira viagem de Emília será para o momento em que o Brasil passava pelo processo de Independência, com a boneca de pano tentando antecipar o fim da escravidão em nosso território.

Ilustração de Guazzelli para o "Dom Quixote das Crianças" da Sesi-SP.

A Sesi-SP, por sua vez, promete colocar no mercado toda a produção infantojuvenil de Lobato, incluindo o polêmico "Caçadas de Pedrinho", ponto de partida para muitas das discussões que cercam a obra do autor. A promessa é que entre fevereiro e julho deste ano 27 títulos diferentes estejam nas livrarias. As controvérsias deverão ser tratadas no texto de apresentação assinado por Tâmara de Abreu, pesquisadora da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, e em eventuais notas que esclareçam pontos nos quais poderiam surgir dúvidas, preconceitos ou erros didáticos.

Rumando para mais uma casa, na visão da FTD os livros com os quais irão trabalhar não apresentam explicitamente qualquer tipo de polêmica, por isso apenas publicarão o texto integral do autor na maior parte das 15 obras que prometem lançar. Elas estarão divididas em seis coleções diferentes: "Reinações de Narizinho", "Doze Trabalhos de Hércules", "Meu Primeiro Lobato", "Maravilhas de Lobato", "Almanaque dos Clássicos da Literatura Brasileira" e "Lobato em Cena", esta transpondo para o teatro textos do escritor ou transformando em prosa as peças teatrais de Lobato, como é o caso de "O Museu da Emília", livro de estreia da série adaptado por Flavio de Souza.

Outras editoras que apresentarão livros de Lobato ao longo do ano são a L&PM e a Globo. Aquela prepara ao menos dez títulos do autor em formato de livro de bolso – dentre eles estão "Aventuras de Hans Staden" e "Dom Quixote das Crianças". A Globo, enfim, que até então era a detentora dos direitos autorais da obra de Lobato e que o vinha publicando regularmente pelo selo Biblioteca Azul (o último foi "A Reforma da Natureza", de dezembro do ano passado) lançará edições de luxo de "A Chave do Tamanho" e "O Picapau Amarelo", além de edições infantis pelo selo Globinho de "Peter Pan" e "Os Doze Trabalhos de Hércules".

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Sobre o autor

Rodrigo Casarin é jornalista pós-graduado em Jornalismo Literário. Vive em São Paulo, em meio às estantes com as obras que já leu e às pilhas com os livros dos quais ainda não passou da página 5.

Sobre o blog

O blog Página Cinco fala de livros. Dos clássicos aos últimos sucessos comerciais, dos impressos aos e-books, das obras com letras miúdas, quase ilegíveis, aos balões das histórias em quadrinhos.