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Livro de Ney Matogrosso tem amor no quartel e ataque à onda conservadora

Rodrigo Casarin

07/11/2018 10h37

Foto: Bruna Prado.

"Vou morrer defendendo a liberdade, até o fim. Sou um homem livre, somos seres livres e temos de afirmar isso o tempo todo. Gostaria que a lembrança sobre minha passagem neste planeta seja de alguém que ousou lutar contra a hipocrisia e queria voltar como espírito guardião da natureza. Quero ser lembrado como uma pessoa que defendeu a liberdade e espero, sinceramente, que enxerguem na minha vida o reflexo dessa liberdade. Quero ir em paz, na hora que tiver que ir, no meu epitáfio estará escrito assim: 'Viveu livre'".

É dessa forma que Ney Matogrosso finaliza o seu "Vira-lata de Raça", livro de memórias que acaba de lançar pela Tordesilhas. Escrito em parceria com o poeta Ramon Nunes Mello, nele o artista que se tornou famoso pela carreira musical marcada pelas influências teatrais repassa momentos marcantes de sua vida. O foco, como era de se esperar, está no relacionamento com as artes e no comportamento provocador e questionador que diz ser sua marca desde a infância – recordando dos tempos de pequeno, mostra logo de cara a conturbada convivência que tinha com o pai, numa das passagens mais importantes do livro.

A melhor parte de "Vira-lata de Raça", entretanto, está na segunda metade da obra: o capítulo no qual Ney lembra do namoro breve e intenso com Cazuza, a pessoa que rompeu sua resistência às relações afetivas e mostrou que o sexo pode estar aliado ao amor. "Foi assim, com o tempo, que compreendi que sexo sem amor é ótimo, mas com amor é algo transcendental, trata-se de uma conexão divina", escreve.

Ney com o Secos & Molhados. Foto: Ary Brandi.

Com uma trajetória marcada pelo combate à repressão, ao longo do livro Ney compara o Brasil de outrora com o de agora e afirma algumas vezes que temos hoje um país mais careta do que ontem. "No atual momento do país, com o crescimento da bestialidade do conservadorismo, penso que um grupo como o Secos & Molhados apanharia na rua", aposta, citando o mítico grupo do qual fez parte na década de 1970.

Aliás, sobre a carreira, num daqueles detalhes que fãs costumam adorar, o artista elenca os discos que mais aprecia: "Homem de Neanderthal", "Seu Tipo", "Pescador de Pérolas", "Bandido" e "As Aparências Enganam". Já a canção que considera mais representativa é "Rosa de Hiroshima", além de gostar muito de "Deus Salve a América do Sul" ("que é profética em relação à situação política e social em que nos encontramos", registra).

Personagem dos mais importantes e instigantes da nossa cultura nas últimas décadas, um livro de memórias de Ney Matogrosso é muito bem-vindo, ainda mais nesse momento de ascensão do conservadorismo. No entanto, o trabalho poderia ter sido um pouco mais caprichado. O texto peca pelo excesso de autoanálises e pela falta de esmero na construção de uma narrativa mais envolvente para o leitor – cenas potencialmente fortes, por exemplo, são constantemente mal exploradas. Além disso, a enorme quantidade de fotos – interessantes e oportunas, sem dúvidas – muitas vezes foram inseridas em pontos que prejudicam o andamento da leitura. Uma pena.

Em todo caso, eis alguns trechos de "Vira-lata de Raça" que merecem destaque:

Reação ao autoritarismo

"Sempre reagi ao autoritarismo, dentro e fora do círculo familiar. Eu não tinha a inocência das crianças e entendia tudo do mundo adulto, as conversas debaixo dos panos. Não me esqueço da surra que tomei do meu pai, quando ele simplesmente se irritou e resolveu me bater com a intenção de que eu chorasse. Outra vez, sem nenhum motivo, ele me deixou de castigo, completamente nu, no meio do jardim de casa. Envergonhado, eu cobria minha nudez com areia. Eu era uma criança indefesa, mas fui criando uma força interna e repetindo a mim que não deveria chorar. Não chorava, só de raiva, para contrariar a autoridade dele. Desafiava o meu pai de todas as formas possíveis. A maior autoridade que enfrentei na minha vida foi Antonio Matogrosso Pereira.

Levei a vida de peito aberto frente aos desafios por esse motivo: um pai militar, conservador, cabeça-dura, e que tinha pavor a qualquer possibilidade de manifestação artística que eu pudesse desenvolver. Ele me reprimia e discriminava. Certa vez, sem que eu soubesse o que a expressão significava, me chamou de 'viadinho'. A segunda vez que ele tentou me ofender, respondi: 'Não sou 'viado', mas quando for o Brasil inteiro vai saber!' Olhei bem no fundo dos olhos dele para rogar essa praga – ou seria profecia? Pelo visto ela se realizou, acabei me tornando Ney Matogrosso".

Foto: Ary Brandi.

Descoberta na marinha

"Só abandonei o medo que tinha do meu corpo e da minha sexualidade quando, numa noite quente no quartel, sem conseguir dormir por causa do calor, saí para uma varanda e vi dois remadores másculos se beijando, se acariciando com tesão e afeto. Excitante. Um estava sentado na mureta e o outro em pé, os dois encaixados num abraço afetuoso que ia muito além do sexo, brilhava. Percebi que havia amor naquela cena, era como se eles estivessem desconectados do mundo, dentro de uma bolha imensa de amor. Naquele instante, compreendi que poderia ficar com homens sem me transformar no que me assombrava – até então pensava que um homem tinha que virar mulherzinha para namorar outro homem. Esse imaginário me assustava aos 17 anos, ainda formando minha sexualidade. Quando vi esses rapazes, passei a cogitar a possibilidade de um outro caminho, me permitir ser, exercitar minha liberdade".

Cazuza

"Na intimidade, Cazuza era um rapaz muito doce, amoroso, afetuoso e dengoso, o contrário da imagem pública dele com um comportamento agressivo e louco provocado pelo álcool. Nós éramos muito loucos, é verdade, livres, e tomávamos muita droga, mas também havia muito amor. Fizemos uma viagem para o sítio do pai dele, eu, Cazuza, e uma amiga em comum, que na época topava nossas loucuras a três. Nós transávamos o dia inteiro, tirávamos fotos a todo instante e ficávamos enlouquecidos. Na hora de voltar para casa percebemos que as máquinas fotográficas estavam sem os filmes, provavelmente porque alguém havia sabotado. Cazuza achava que a operação toda fora planejada pelo pai dele em cumplicidade com os empregados, para não registrarmos nossa loucura amorosa: 'Foi meu pai, aquele mafioso!' Deve ter sido mesmo o João Araújo, com suas preocupações de pai – uma pena, pois hoje teríamos fotos incríveis desse encontro".

Contra a caretice e a hipocrisia

"Bem no início do Secos & Molhados, em São Paulo, eu estava cantando 'Rosa de Hiroshima', e a plateia começou a fazer um coro: 'Viado! Viado!'. Eu parei de cantar e esperei um tempo, mas o coro de vaias e xingamentos só aumentava. Então fiz uma pose bem linda e esperei um pouco mais. Nada. Foram uns 15 minutos e eu lá, parado, ouvindo milhares de pessoas me chamarem de viado, de filho da puta. Aí peguei o microfone e gritei: 'Vão tomar no cu'. Houve um silêncio, e eles começaram a aplaudir. Entendi ali que não podia ter medo deles, tinha que reagir, não baixar a cabeça para aquele bando de conservadores covardes. Em outra apresentação, em Brasília, o ministro de Minas e Energia da época estava na plateia com a família e mandou parar o show porque a mulher e a sogra ficaram ofendidas por eu estar no palco me requebrando sem camisa, com peito cabeludo à mostra. É óbvio que isso não ocorreu, permaneci como estava, e após um tempo de espera voltamos a cantar. A caretice e a hipocrisia sempre tentando censurar as artes em defesa da família, da moral e dos bons costumes, nada muito diferente do que temos testemunhado no Brasil de hoje".

Foto: Bob Wolferson.

A literatura

"Em meio a todo cerceamento da vida, tive a alegria do encontro com professoras que me estimulavam para as artes e para a leitura. O prazer com literatura, por exemplo, foi instigado na escola através dos personagens do Monteiro Lobato. A cada leitura de um novo livro, eu tomava gosto pela literatura. Assim passei a abrir mão de sair para ficar em casa lendo um bom livro. Amo ler. Mas tive dificuldade com a poética, só fui me aproximar da poesia com o Secos & Molhados, pois estávamos trabalhando um som pop com poemas famosos: 'Rosa de Hiroshima', do Vinícius de Moraes, 'Prece Cósmica', de Cassiano Ricardo, 'Rondó do Capitão', de Manuel Bandeira, 'Não, Não Digas Nada', de Fernando Pessoa. Sem falar em outras canções que são pura poesia, como 'Sangue Latino', capaz de invocar a força do nosso sangue contra o que nos é imposto pela América do Norte, um hino de resistência".

"Insistem em me rotular"

"Não me enquadro em nada, mas ainda insistem em me rotular. Já transei com muitas mulheres e com muitos homens, sou livre para me relacionar com quem eu quiser. Sou uma pessoa muito sexualizada e manifesto a minha sexualidade da maneira que o momento permita. Sei que sou rotulado como homossexual, mas são as pessoas que me categorizam assim, não me rotulo dessa maneira e nem entendo que eu tenha que ser de alguma maneira só porque as pessoas acham isso sobre mim.

Sou um ser humano que não sente a necessidade de ser classificado. Esse rótulo de 'homossexual' é muito recente, do final do século 19, antes a palavra não existia. Homossexual, heterossexual, isso tudo é uma bobagem. Somos livres. Me rotulam porque eu admito que transo com homens, mas não tenho porque esconder nada.

[…]

Eu me nego a ser estandarte de movimento gay, pois acredito e defendo direitos diversos, não somente da liberdade sexual, defendo os direitos dos negros, dos índios, dos pobres… Seria muito conveniente para o sistema que eu fosse um porta-estandarte dos gays. Respeito o movimento, mas não preciso ser porta-voz. Eu sou um ser humano que pensa, que raciocina e que reflete sobre o mundo. Sou a favor da diversidade e das liberdades, não de rótulos".

Contrapondo a onda conservadora

"Estar num palco, aos 77 anos, cantando música feita por jovens compositores e falando de liberdade é um ato político. De algum modo, estou me contrapondo a essa onda conservadora que está querendo tomar conta de tudo. A minha manifestação no palco estimula a sexualidade nas pessoas, pelo que ouço delas. Não é uma tese minha, recebo cartas de pessoas de muita idade comentando que, ao me verem no palco, reconhecem que a sexualidade faz parte da vida delas. Fico feliz de poder mostrar para as pessoas que elas estão vivas".

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Sobre o autor

Rodrigo Casarin é jornalista pós-graduado em Jornalismo Literário. Vive em São Paulo, em meio às estantes com as obras que já leu e às pilhas com os livros dos quais ainda não passou da página 5.

Sobre o blog

O blog Página Cinco fala de livros. Dos clássicos aos últimos sucessos comerciais, dos impressos aos e-books, das obras com letras miúdas, quase ilegíveis, aos balões das histórias em quadrinhos.