Pais acusam livro de Ana Maria Machado de fazer apologia ao suicídio
"Como as compras só chegaram quando ele estava no colégio, ainda teve que esperar a volta, o jantar e a hora da sobremesa. Quase não aguentava mais. Ai também resolveu que o melhor era deixar para engasgar com a maçã na hora de deitar, quando estivesse sozinho. E que a família dele era tão desligada dessas coisas que era até capaz de alguém dar um tapa nas costas dele só para desengasgar, e aí estragava o plano todo".
Pais de diversos cantos do Brasil estão coléricos por conta desse trecho de "O Menino que Espiava Pra Dentro", de Ana Maria Machado, publicado originalmente em 1983 e que é adotado em escolas pelo país. Mensagens divulgadas nas redes sociais acusam a autora de fazer apologia ao suicídio. Na história, Lucas, o protagonista, pensa em engasgar com a maçã para, dessa forma, acessar o mundo da imaginação. Desde 2008 o título é editado pela Global, que já vendeu mais de 92 mil exemplares do livro, o que dá uma dimensão de quanto o trabalho já circulou por aí, nunca ter causando incômodos do tipo.
Desde ontem, entretanto, uma enxurrada de mensagens contra a obra e contra a autora começou a se espalhar pela Internet. No Google Books, por exemplo, é possível ler recados como "Que Deus tenha misericórdia dessa autora. Esse livro apresenta uma maneira inescrupulosa de como uma criança pode provocar um suicídio. Que o MEC [Ministério da Educação] reveja e retire esse livro de circulação", "Livro impróprio para crianças, simplesmente as ensina a se suicidar. Como pode uma autora renomada como a Ana Maria Machado ter escrito e ainda manter um livro como este em circulação?" e "Livro lixo. Instiga a criança ao suicídio".
O mesmo tom se repete em postagens no Facebook – onde a página oficial de Ana Maria está desde a tarde de ontem fora do ar -, no Instagram, no WhatsApp, na plataforma de leitores Skoob e no Twitter, rede na qual, por sua vez, começam a surgir vozes em defesa da autora. "Estão perseguindo a Ana Maria Machado por um trecho específico de uma obra sem sequer compreender seu todo", argumenta, por exemplo, uma internauta. Concordo absolutamente.
Achar que "O Menino que Espiava Pra Dentro" faz apologia ao suicídio de crianças por conta da cena da maçã seria o mesmo estapafúrdio de acusar as histórias do Superman de incentivar que pequenos se atirem da janela pensando que, por ter um lençol no pescoço e uma cueca sobre a calça, podem voar. Além disso, ao longo de toda a narrativa fica claro que ele fala sobre o valor da imaginação, mas também sobre o quanto a nossa própria realidade pode ser boa e surpreendente.
Lucas não morde a maçã para dar cabo de sua vida, apenas quer passar mais tempo no mundo de sua cabeça. E é o que acontece, mas não porque fica entre a vida e a morte. Ele simplesmente dorme logo após comer a fruta, como mostra a sequência provavelmente ignorada por parte significativa daqueles que se queixam de Ana Maria. No desdobramento, após a página que é alvo das queixas, o garoto está no mundo lúdico e onírico, proporcionado pelos seus belos sonhos, que são atrapalhados por uma mãe que, tal qual uma princesa, o desperta porque já deu o horário e há coisas boas o aguardando no mundo real.
Só que a moda da vez é a inquisição tecnológica: julgar sem conhecer e gritar nas redes sociais. A Global, que se posicionou com uma nota que está no final do texto, também tem recebido reclamações tanto pela Internet quanto por telefone, com pessoas exigindo que o título seja retirado de circulação. Já adquirido em compras governamentais e distribuído para escolas públicas, "O Menino que Espiava Pra Dentro" é indicado para crianças a partir de oito anos e busca instigar a curiosidade e discutir exatamente se é possível viver apenas no mundo da imaginação – dentre as atividades propostas pelo material de auxílio feito pela editora há a sugestão, por exemplo, para que alunos "criem o dia de espiar para dentro e espiar para fora" e "escolham uma forma de socializar as descobertas".
Já Ana Maria Machado é uma das escritoras mais respeitadas do país. São de sua autoria livros como "Bisa Bia, Bisa Bel", "Menina Bonita do Laço de Fita" e "Quem Manda na Minha Boca Sou Eu!". Dentre os diversos prêmios que ganhou estão o Machado de Assis e o Hans Christian Andersen, considerado o Nobel da literatura infantojuvenil, que recebeu em 2000. É membro da Academia Brasileira de Letras, entidade que presidiu entre 2012 e 2013; atualmente é a Primeira-Secretária da casa.
Veja a nota oficial emitida pela Global:
A Global Editora tem recebido algumas manifestações sobre a obra "O Menino que Espiava Pra Dentro", de Ana Maria Machado. As mensagens acusam o livro de incitar o suicídio entre as crianças. Precisamente, trata-se do texto da página 23, em que o menino come uma maçã para ingressar no mundo dos sonhos – um processo poético para a criança entrar no mundo da imaginação.
Esclarecemos que as referências à maçã e ao fuso são alusões às histórias da Branca de Neve ou da Bela Adormecida e constituem parte integrante do universo da história, sustentando o argumento de que imaginar pode ser muito bom, mas a realidade externa se impõe. Conversar com os outros (como a mãe) é fundamental, e a afetividade que nos faz felizes está ligada a seres vivos e reais.
O livro foi publicado em 1983 e até o momento não havia despertado nada de negativo nessa área. Inclusive, trata-se de uma obra adotada em diversas escolas brasileiras.
Ana Maria Machado é considerada pela crítica como uma das mais versáteis e completas escritoras brasileiras contemporâneas, com mais de 100 livros publicados no Brasil e em mais de 17 países, somando mais de 20 milhões de exemplares vendidos. O seu carinho e cuidado com a educação de nossas crianças e a formação de leitores sempre foi sua prioridade. Portanto, em momento algum, escreveria algo que pudesse prejudicá-las.
Todo o nosso apoio e carinho à Ana Maria Machado!
Equipe Global Editora
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