Filhos que mandam? Chilena escreve corajoso manifesto contra a maternidade
Levar o filho para a escola, buscar, deixar no inglês, acompanhar no futebol e no balé, aplaudir no final da apresentação da turma de violão… Aguentar birra em casa, explicar que não pode jogar videogame durante o jantar. Ceder por causa da choradeira e deixar que a criança fique com o tablet mesmo na mesa do restaurante. Acompanhar nas lições de casa. Se ainda for bebê, estar atenta a cada resmungo, disposta a fazer vigília para que pernilongo algum perturbe o sono da preciosidade…
"Antes eram o pai e a mãe que detinham o poder, agora são os filhos que mandam, exigindo, como nunca, submissão e incondicionalidade absoluta de seus pais. Se deixarmos que façam isso, e estamos deixando com o consentimento da sociedade, esses filhos se tornarão nossos adversários: nossos acusadores, nossos juízes e carcereiros; nossos patrões-em-miniatura e nossos clientes, exigindo de nós imediata satisfação de seus desejos. Serão eles que nos consumirão".
É incisiva e corajosa a posição que a escritora chilena Lina Meruane adota em "Contra os Filhos". Ensaio publicado originalmente em 2014 e que agora chega ao Brasil pela Todavia, nele a autora do ótimo Sangue no Olho (Cosac Naify) constrói um manifesto contra a maternidade moderna. Para Meruane, a "força que nos mobiliza cegamente" e que obriga as mães a tratarem os filhos como bibelôs é uma forma de mandar as mulheres de volta ao lar, freando as diversas conquistas sociais que tiveram do século 20 para cá.
"Os progenitores foram expropriados do tempo e do espaço próprios ou do casal, subtraídos principalmente da mãe. Tão propensa, como sabemos, à ladainha do anjo-superprotetor (o anjo da guarda feminino!). Tão inclinada aos mandados contrários à liberação física e psíquica das mulheres-mães. Tão dada a pensar a inalcançável perfeição dos filhos como dever. Foi assim – essa é minha tese, espero estar persuadindo-as -, foi assim, repito, que o poder, a sociedade, a cultura ou como queiramos chamar essa força que nos mobiliza cegamente, foi assim que se estabeleceu um novo cordão umbilical para nos amarrar novamente à casa, apertando o nó das exigências domésticas a tal ponto que até o apoio do parceiro, quando há, e a divisão equitativa dos deveres, quando essa improvável divisão existe, se mostram insuficientes".
Para Meruane, muitos se transformaram em meros servos de seus rebentos, dominados por criaturas que "de adultos-em-miniatura [como as crianças eram encaradas há poucos séculos] passaram a ser filhos-mimados e em seguida filhos teimosos e cada vez menos responsáveis pelo que é seu. Filhos dispostos a envergonhar seus pais com birras públicas, filhos e filhas que, já adolescentes, começam a se tornar abusadores". A autora aponta que a própria sociologia já fala de uma classe chamada de "filho-tirano" ou com a "síndrome-do-imperador".
Mas essas palavras aparecem no final do livro, quando Meruane amarra toda a explanação que faz sobre a maternidade. De início a autora antecipa o óbvio, prevenindo-se de eventuais ataques raivosos: "Não escrevo a favor do infanticídio, por mais que o recém-nascido do vizinho ao lado interrompa meu sono". Também deixa claro sua posição com relação à gravidez: "[Sou] a favor de todas as formas imagináveis de anticoncepção que não ponham em risco a saúde das mulheres". E ainda se diz contrária a certas mães que "jogaram a toalha e renunciaram angelicamente a todas as suas outras aspirações".
Nesse ponto, é bom o momento no qual a autora fala sobre como a necessidade de cuidar dos filhos pode ser um grande empecilho na carreira de artistas como ela. São muitas as escritoras com as quais Meruane dialoga ao longo da obra, seja por conta de elementos biográficos, seja apoiando-se em escritos dessas suas colegas. Dentre elas, nomes como Nélida Piñon e Clarice Lispector, apontada pela chilena como "modelo de gerações futuras", que certa vez declarou "sem um vislumbre de dúvida: 'Desistiria da literatura. Não tenho dúvidas de que como mãe eu sou mais importante do que como escritora'".
Outra questão fundamental levantada pela autora é a pressão social que existe para que as mulheres sejam mães: "Lanço minha conjetura como certa: no ter-filhos não persiste só o chamado biológico (o proverbial relógio fazendo saltar seu insuportável tique-taque), mas a ele se acrescenta o insistente alarme do ditado social: somam-se os hormônios e os discursos da reprodução, fazendo com que ao mandado materno se torne difícil de se esquivar", crava a autora, para depois lembrar do bombardeio que praticamente toda mulher sofre a partir dos vinte anos: Quando você vai ter filhos? E a criança, vem quando? Como assim você não quer ter filhos? Você não acha um egoísmo não ter filhos? Você logo vai mudar de opinião…
Passando pela maneira como a mulher e a maternidade foram sendo encaradas ao longo da história, os absurdos e bizarrices relacionadas ao assunto e discussões sobre as diversas formas de feminismo, a autora ainda oferece uma interessante perspectiva de como o Estado deveria se portar frente ao tema:
"Vocês já devem ter notado que o Estado foi, até agora, o grande ausente desta ladainha. Chegou o momento de avaliá-lo e de exigir dele o que lhe cabe. De demandar que seja consequente: ou são moderadas suas pretensões reprodutivas e se educa sexualmente os menores e se permitem campanhas de prevenção da gravidez e se distribuem preservativos e pílulas anticoncepcionais ou do dia seguinte e se amplia o direito ao aborto; ou bem se auxilia a família até que seus filhos sejam adultos".
Por mais que seja cansativo em alguns momentos e careça de profundidade em outros – na minha opinião, a autora poderia se dedicar mais exatamente à parte em que mostra como não legar herdeiros para nossa miséria deveria ser uma opção não só socialmente aceita, mas até festejada num mundo superpovoado -, "Contra os Filhos" entra para a minha lista de bons livros sobre o assunto, indicados principalmente àqueles que, diferente de Meruane, são doidos para colocar crianças no mundo.
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