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Racismo: Pogba e Mbappé dificilmente seriam jogadores no Brasil há 100 anos

Rodrigo Casarin

17/07/2018 08h57

Com um time formado em boa parte por jogadores negros, a França venceu a Copa da Rússia e se tornou bicampeã do mundo. Tivessem nascidos no Brasil há pouco mais de cem anos, no entanto, craques como Mbappé e Pogba e ótimos jogadores como Kanté e Umtiti provavelmente sequer arrumariam um bom clube para bater uma bola. É que ali pelo começo do século 20, o que imperava no futebol brasileiro era o racismo e o preconceito social – ou o racismo travestido de preconceito social –, como mostra o livro "O Negro no Futebol Brasileiro", de Mario Filho.

Não poderia passar uma Copa inteira falando sobre livros de futebol sem mencionar este que é o nosso maior clássico do ramo. Mais do que uma investigação sobre as raízes e as primeiras décadas do jogo no país, "O Negro no Futebol Brasileiro" traz um olhar sociológico fundamental para entendermos o próprio Brasil, tanto que costuma ser comparado a títulos como "Casa Grande e Senzala", de Gilberto Freyre – sim, o trabalho de Mario também é alvo de críticas semelhantes às feitas ao de Freyre, como a de evidenciar traços racistas do próprio autor.

Mas, ainda que mereça ser levado em conta, isso não diminui a importância de "O Negro…". Os textos de apoio da edição que tenho em mãos – a 5ª, publicada pela Mauad X em 2010, enquanto a original é de 1947 – dá uma dimensão de como o futebol era tratado por aqui. "Havia se tornado costume entre 'famílias de bem', após assistir missa na Igreja da Matriz da Glória no Largo do Machado, se dirigir, ainda trajando as suas melhores roupas de domingo, para o estádio do Fluminense nas Laranjeiras, para acompanhar a performance dos seus filhos e amigos nos jogos de futebol. Com a ascensão do Vasco, essa seleta assistência passava a ter de disputar lugar nas arquibancadas com imigrantes portugueses, suas famílias, colegas e empregados. Para a elite da época, tratava-se de inaceitável subversão da hierarquia social", constata Luis Fernandes, cientista político.

O editor José Mauro Firmo definiu aqueles anos iniciais do futebol brasileiro como tendo "princípio aristocrático, praticado somente por 'brancos esnobes'". Já o historiador Édison Carneiro recorda que instituições que organizavam o esporte chegaram a fazer "campanhas de 'arianização' do futebol, afastando dos times jogadores pretos e mulatos, então numerosos nos clubes de subúrbio" como o Bangu, o América, o Vasco e o São Cristovão.

Como é possível notar, o esporte era praticado basicamente por jovens da elite que conviviam em antros de famílias tradicionais. Os métodos para manter os pobres e negros longe dos gramados estão detalhados no livro de Mario. Dentre eles constavam investigações para saber como os jogadores ganhavam a vida e questionários para averiguar o grau de escolarização dos atletas. Numa época em que a escravidão há pouco tinha sido abolida e a taxa de analfabetismo do país batia os 70%, caso o jogador não assinasse a súmula corretamente, o time podia perder os pontos da partida a ser disputada e o atleta intimado a fazer uma prova de leitura e escrita

Alguns negros bons de bola até eram tolerados pelos atletas brancos da elite, desde que dessem um jeito de disfarçar seus traços identitários, fosse engomando o cabelo ou apostando numa grossa camada de pó-de-arroz para o rosto. É exemplar um trecho do livro no qual o autor fala sobre Friedenreich, craque "de olhos verdes", "rosto moreno" e "cabelo farto mas duro, rebelde", que obrigava o atleta a ficar pelo menos "meia hora amansando o cabelo". Às vezes, demorava tanto para ficar do agrado dos outros atletas que até atrasava o início da partida:

"O juiz impaciente, ameaçando começar a partida sem Friedenreich, e Friedenreich lá dentro, no vestiário, a toalha amarrada na cabeça, ainda desconfiado de que não chegara a hora de tirar o turbante. Era sempre o último a entrar em campo". Segundo Filho, "o mulato e o preto eram, assim, aos olhos dos clubes finos, uma espécie de arma proibida. Não um revólver, uma navalha. Se nenhum grande clube puxasse a navalha, os outros podiam continuar lutando de florete".

As coisas só começaram a mudar mesmo em 1923, quando o título carioca conquistado por um Vasco da Gama repleto de jogadores negros se tornou um símbolo do que viria nas décadas seguintes. Já nos anos 1930, com a incontornável profissionalização do esporte, que movimentava cada vez mais dinheiro, e a urgente necessidade dos bons jogadores, independente do tom de sua pele, estarem em campo para que resultados favoráveis fossem alcançados, as portas estavam definitivamente abertas para que os negros fizessem história no futebol brasileiro.

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Sobre o autor

Rodrigo Casarin é jornalista pós-graduado em Jornalismo Literário. Vive em São Paulo, em meio às estantes com as obras que já leu e às pilhas com os livros dos quais ainda não passou da página 5.

Sobre o blog

O blog Página Cinco fala de livros. Dos clássicos aos últimos sucessos comerciais, dos impressos aos e-books, das obras com letras miúdas, quase ilegíveis, aos balões das histórias em quadrinhos.