Racionais no vestibular soa como ótima consequência do Nobel para Bob Dylan
Causou surpresa o anúncio de que "Sobrevivendo no Inferno", álbum clássico do rap nacional lançado em 1997 pelos Racionais, está entre as leituras obrigatórias para o vestibular da Unicamp de 2020. A obra aparece na relação de Poesia ao lado de "Sonetos", de Luís de Camões, e "A Teus Pés", de Ana Cristina Cesar.
Considero a escolha um tremendo acerto, talvez possível muito por conta do Nobel de Literatura dedicado a Bob Dylan em 2016, com ênfase na sua expressão poética dentro da música. O reconhecimento institucional (da Academia Sueca, no caso) de que a arte literária pode estar em lugares que não as páginas de um livro, ou algo que o valha, cria um movimento favorável para que outras instituições encarem a questão com o mesmo olhar. Como no caso da Unicamp, que pela primeira vez coloca um álbum na sua lisa de leituras obrigatórias.
Olhando para as letras de "Sobrevivendo no Inferno", não há como negar que temos um material de alta qualidade ali. "Diário de um Detento" é um dos maiores relatos contemporâneos da vida no cárcere: "Ratatatá, mas um metrô vai passar/ Com gente de bem, apressada, católica/ Lendo jornal, satisfeita, hipócrita/ Com raiva por dentro, a caminho do centro/ Olhando pra cá, curiosos, é lógico/ Não, não é não, não é o zoológico/ Minha vida não tem tanto valor/ Quanto seu celular, seu computador".
"Capítulo 4, Versículo 3", por sua vez, é um painel de vidas que vivem próximas ou se rendem ao mundo do crime: "Mas se eu fosse aquele moleque de touca/ Que engatilha e enfia o cano dentro da sua boca/ De quebrada, sem roupa, você e sua mina/ Um dois, nem me viu… já sumi na neblina/ Mas não… permaneço vivo, prossigo a mística/ Vinte e sete anos contrariando a estatística". Isso para ficar em apenas duas das excelentes (e, admito, mais óbvias) faixas do álbum, que ainda conta com preciosidades como "Tô Ouvindo Alguém me Chamar", "Mágico de Oz" e "Fórmula Mágica da Paz". Uma pena que "Negro Drama" e "Um Homem na Estrada" sejam de outros trabalhos de Mano Brown e seus parceiros.
Já para o povo do "na minha época vestibular pedia Machado de Assis", um aviso: podem ficar tranquilos. Machadão continua na lista junto com outros autores já consagrados, como Antonio Vieira e Guimarães Rosa. Mas a literatura é viva, caminha, e novos nomes surgindo para dividir espaço com o cânone – e, dependendo de como for, ampliar ou até mesmo levar a uma revisão do cânone – são sempre bem-vindos, mesmo que esses nomes tragam uma forma de fazer literatura diferente do que a professora de outrora ensinou na escola.
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