Apontado como fenômeno literário, autor deixou Chico Buarque "chapado"
Há alguns dias um novo nome explodiu no meio literário nacional: Geovani Martins. Ao mesmo tempo, grandes jornais publicaram perfis e entrevistas do jovem autor carioca (nasceu em 1991) e um apanhado de elogios críticos exaltavam seu livro de estreia, "O Sol na Cabeça", publicado pela Companhia das Letras. Chico Buarque ficou "chapado" quando leu os textos de Geovani, Antonio Prata, talvez nosso melhor cronista da atualidade, derreteu-se em elogios. Na capa do volume de contos, um selo que alardeia: "o novo fenômeno literário brasileiro vendido para 8 países". A tiragem inicial é de consideráveis 10 mil exemplares e os direitos da obra já foram negociados para o cinema. "É o Machado de Assis melhorado", alguém escreveu. Brincadeira, ninguém chegou a tanto, mas faltou pouco para que surgisse algo do tipo.
Pois finalmente li os treze contos de "O Sol na Cabeça" e Geovani entende mesmo do riscado, mas entre saber escrever e logo na estreia já ser apontado como fenômeno há uma distância absurdamente grande. Aliás, jogar todo esse peso nas costas do garoto pode ser prejudicial ao próprio autor, num movimento de precipitação semelhante ao que acontece no futebol (quantos bons jogadores não são apontados como geniais logo que mostram os primeiros dribles e depois, até pela expectativa depositada neles, acabam não virando lá grandes coisas?).
Geovani nasceu em Bangu, viveu em comunidades e trabalhou como "homem-placa", atendente de lanchonete e garçom. Leva para sua literatura não só o olhar do morro, mas também a linguagem da periferia, algo que alguns vêm apontando como uma revolução. Não sei se o fazem por um absurdo desconhecimento do que acontece longe do eixo Avenida Paulista – Copacabana – Leblon – Pinheiros ou por má-fé mesmo, mas não há como olhar para a escrita de Geovani e enxergar ali alguma grande novidade se desde 2000, quando Ferréz lançou "Capão Pecado", a literatura marginal conquistou um espaço relevante e que ainda cresce (tal literatura já existia bem antes de Ferréz, vale lembrar).
Mas Geovani não deve responder pelo que dizem dele, tampouco seria correto julgá-lo por isso. Vamos ao que realmente importa: o texto. O autor concilia muito bem a linguagem coloquial das quebradas com as normas cultas da língua, ainda que às vezes careça de uma lapidação melhor para acertar o tom das falas dos personagens. Um exemplo vindo do conto inaugural, "Rolézim": "Vários pulmão de aço no bagulho e nenhuma seda. Pior é que perdemos um tempão só para decidir quem ia na missão de arrumar a roupa. Ninguém queria pedir pros maconheiro playboy lá da praia, tudo mandadão, cheio da marra". Nesse trecho, o "Pior é que perdemos um tempão" me parece deslocado do discurso.
Os contos de Geovani são cheios de jovens que oscilam entre a adolescência e a vida adulta, vêm de famílias de estruturas abaladas – em alguns casos por conta desses próprios jovens – e estão sempre inseridos num universo repleto de drogas (principalmente ilícitas) e violência. Ou seja, praticamente a caricatura de quando falamos de literatura marginal. Os personagens ao menos apresentam complexidade e as histórias oscilam entre o bom e o muito bom, mas as únicas que talvez se aproximem de um ótimo são "Sextou" (expressão horrível, irmã de aberrações como "topzera") e "Travessia".
Já o olhar do autor é atento, como revela o diálogo abaixo retirado do conto "Roleta-russa", no qual fica claro que os personagens não sabem separar o que é fantasia e o que é realidade, algo cada vez mais caro aos nossos dias:
"- Trinta e oito é foda porque, quando entra, faz só um buraquinho, mas quando sai, deixa o maior buracão do outro lado.
– Tá maluco, cara. Quem faz isso é doze punheteira. Eu vi naquele filme, 'O Sexto Sentido', na hora que o moleque vira e tem o maior buracão na cabeça dele. Atrás. Foi tiro de doze aquilo.
– Eu vi o filme também, lerdão. Todo mundo viu. Aquilo é tiro de oitão. Tu quer saber mais do que eu, cara, meu irmão é do exército.
– Vocês ficam nessa de oitão, de doze punheteira, eu sou mais Golden Gun. Se acertar um tiro, pode ser qualquer lugar, pode ser até no pé, mata na hora. A bala onde que entra vai direto procurar o coração.
– Meu irmão falou, cara, que essa arma só tem no 007.
– E teu irmão sabe de quê, animal? Teu irmão é pé-preto".
Para quem não sabe, a Gonden Gun era a arma mais desejada de quem trocava tiros no modo multijogador de "007 Conta GoldenEye", jogo do Nintendo 64.
Passando a régua, "O Sol na Cabeça" é um bom livro, que revela um autor que tem virtudes latentes, mas que carece de lapidação em alguns pontos. Fenômeno? Geovani Martins parece mesmo ser um bom escritor, mas vamos com calma.
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