Topo

Comuna de Paris: conheça a maior carnificina europeia do século 19

Rodrigo Casarin

23/03/2018 10h36

A desastrosa campanha francesa na guerra contra a Prússia aliada à batida em retirada do líder do executivo local criou um cenário favorável para que trabalhadores parisienses que sobreviviam em bairros miseráveis, em meio ao esgoto e a infestações de ratos, se rebelassem contra o governo. Contando com o apoio de parte do exército que não obedecia mais aos seus encastelados superiores (estes permaneciam no luxo de Versalhes enquanto a população brigava por comida, alimentando-se até da carne de ursos e girafas que antes viviam no zoológico), comunistas, anarquistas e demais progressistas e democratas estabeleceram no começo de 1871 a Comuna de Paris.

O que era essa Comuna? "Um governo autônomo e progressista que trouxe liberdade para os parisienses, entre os quais muitos acreditavam ser 'donos de suas próprias vidas' pela primeira vez. Famílias de bairros proletários passeavam pelos beaux quartiers da capital, imaginando uma sociedade mais justa", escreve o historiador John Merriman no excelente "A Comuna de Paris – 1871: Origens e Massacre" (Anfiteatro), livro que fala sobre o período dando bastante destaque para os personagens-chave de todo o processo. Recomendo a leitura principalmente àqueles que se interessam por movimentos sociais (seja como entusiasta, seja espumando de raiva ao ouvir falar de algo do tipo).

Aproveitando que a própria França buscava se reestruturar após a guerra, a Comuna teve a mínima chance de prosperar. Os communards (como eram chamados os membros do movimento) minaram o poder da Igreja, tiraram os símbolos religiosos das escolas e instituíram que a educação seria gratuita, obrigatória e laica, privilegiando a disseminação de ideais republicanos. Aumentaram os salários dos educadores e igualaram a remuneração de professores e professoras. Estabeleceram que o governo não mais daria subsídios a instituições religiosas e, em médio prazo, espalharia creches para crianças pequenas nos bairros onde os trabalhadores costumavam morar.

Seria questão de tempo para que pudessem arquitetar uma sociedade na qual a gestão estivesse de fato nas mãos do povo. "A Comuna era uma espécie de 'festa permanente' de pessoas comuns que comemoravam sua liberdade se apropriando das ruas e praças de Paris. […] A Comuna dava enorme importância ao simbolismo político e a destruição de vários símbolos de 'reação' e 'injustiça' fazia parte de uma atmosfera festiva que permitia a algumas pessoas esquecer a situação cada vez mais tenebrosa", escreve Merriman.

O sonho duraria pouco, no entanto. Em dez semanas Versalhes já tinha reunido 130 mil homens – "uma imensa 'horda de bonapartistas, clérigos, orleanistas e conservadores' decididos a destruir a república democrática e social", segundo Élie Reclus, uma das fontes do autor – e 500 canhões. Rumaram a Paris, onde, entre os dias 21 e 28 de maio de 1871, protagonizaram a maior carnificina da Europa no século 19.

Incentivados pela elite francesa, militares trucidaram tanto communards quanto aqueles que simplesmente continuaram vivendo na cidade. Matavam com a convicção de que se a pessoa estava ali durante a Comuna, era conivente com o movimento, culpada e merecia a morte. As barricadas espalhadas pelas ruas parisienses se transformaram no símbolo da resistência daqueles revolucionários cujas forças, recursos e inteligência bélica necessários para uma batalha pela sobrevivência inexistiam.

"Em Parc Monceau, Châtelet, École Militaire e Jardins de Luxemburgo, cortes marciais estavam executando centenas de communards, homens e mulheres, depois de interrogatórios que às vezes não duravam mais do que dez segundos. […] Em Châtelet, uma mulher foi morta simplesmente por estar usando um cinto vermelho", relata Merriman. A carnificina atingiu seu ápice em Montmartre, um dos últimos polos de resistência da Comuna. Alguns anos depois do massacre, a Igreja construiu por lá a Sacrè Cour, atualmente um dos principais destinos turísticos de Paris e uma espécie de "revanche" ou provocação dos católicos aos communards.

Ao cabo, a situação da cidade era lastimável. Além de estar destruída pelos bombardeios, estava tingida de vermelho e fora transformada em um imenso cemitério. "As ruas e sarjetas ficaram vermelhas de sangue. Soldados obrigaram moradores a jogar cloro nos cadáveres, fazendo as ruas parecerem cobertas de neve. Milhares de corpos já haviam sido jogados em covas coletivas ou levados para os Carrières de L'Amérique, enterrados nas catacumbas ou para além dos baluartes. Os corpos restantes podem ter sido deixados ali intencionalmente para mostrar às pessoas comuns o custo do seu desacato".

Os números oficiais falam em 17 mil execuções naqueles sete ou oito dias, mas algumas estimativas apontam que até 35 mil pessoas podem ter sido mortas na barbárie. Além disso, dezenas de milhares de parisienses foram presos e muitos deportados para a Nova Caledônia, ilha no Oceano Pacífico. Merriman crê que o número talvez seja exagerado, mas há pesquisas que indicam que até 100 mil trabalhadores foram aniquilados, detidos ou precisaram fugir de Paris após o início dos ataques à Comuna.

Também assustam as ideias que circulavam pela elite francesa na época. O jornal Le Figaro, por exemplo, disparou em uma de suas edições: "O que é um republicano? Um animal selvagem". Em outra oportunidade, bradou: "Ajudem-nos a acabar com os vermes democratas e socialistas". Já parte do povo que vivia em palácios e com taças de champanhe em mãos chegou a sugerir que tocassem fogo em Paris para que a cidade ficasse "purificada" após arder em chamas – sim, a ideia era destruir Paris para que pudessem salvá-la.

Não o fizeram, mas de nada adiantaria. Os dias de Comuna e a trágica e fatal resistência de homens e mulheres viraram um símbolo da luta por ideais progressistas. Merriman é feliz ao resgatar uma citação de Victor Hugo, autor de "Os Miseráveis": "O cadáver está na terra, mas a ideia está de pé".

Gostou? Você pode me acompanhar também pelo Twitter e pelo Facebook.

Sobre o autor

Rodrigo Casarin é jornalista pós-graduado em Jornalismo Literário. Vive em São Paulo, em meio às estantes com as obras que já leu e às pilhas com os livros dos quais ainda não passou da página 5.

Sobre o blog

O blog Página Cinco fala de livros. Dos clássicos aos últimos sucessos comerciais, dos impressos aos e-books, das obras com letras miúdas, quase ilegíveis, aos balões das histórias em quadrinhos.